Descobrindo a "Amoris Laetitia"
Por que eu discordo do cardeal Caffarra e
concordo com o cardeal Schönborn?
Andrea Grillo*
blog “Come
Se Non”
16-07-2016
“A Amoris
Laetitia garante a continuidade à doutrina mediante uma oportuna tradução e
conversão, enquanto a posição do cardeal Caffarra – que ele afirma ser clara e
límpida – gera um contínuo curto-circuito entre doutrina eclesial, experiência
dos sujeitos e mediação eclesial.”
PAPA FRANCISCO abençoa uma família à entrada da Basílica de São Pedro - Vaticano |
No
debate em torno da Amoris Laetitia **,
devemos honrar os argumentos mais fortes e convincentes. No diálogo à distância entre dois cardeais, eu tento pôr à prova os
argumentos do cardeal Caffarra.
Uma
premissa necessária. Eu conheço pessoalmente o cardeal Caffarra, a quem
encontrei duas vezes, primeiro quando era bispo de Ferrara e, depois, como
arcebispo de Bolonha. E, nas duas ocasiões, sempre notei a afabilidade e a
fineza do modo com que ele se relacionava com as pessoas individuais. Ainda
mais me surpreende a veemência com que
ele critica o papa e o cardeal Schönborn quando explica, com elegância e
fineza, as boas razões da Amoris Laetitia.
A ponto de chegar a lhes pedir, até
mesmo, que deem marcha à ré e desmintam a si mesmos.
Gostaria
de expor os aspectos mais problemáticos desse modo de ler a Amoris Laetitia em cinco pontos:
![]() |
CARLO CAFFARRA Teólogo Moral - Cardeal-Arcebispo emérito de Bolonha (Itália) |
1.
Uma hermenêutica da descontinuidade
A
primeira coisa que me surpreende é o fato de que o cardeal Caffarra levanta abertamente a hipótese de uma
"descontinuidade insuportável" nas teses magisteriais expressadas
pela Amoris Laetitia. Ele lê a
história da doutrina matrimonial como se, por 1.900 anos, se tivesse
desenvolvido uma doutrina coerente e monolítica, que encontraria a sua
expressão completa nos textos que ele cita: Veritatis
splendor, Familiaris Consortio e Sacramentum caritatis. Enquanto a Amoris
Laetitia seria uma ruptura inaceitável, porque romperia o princípio
"revelado" do exercício legítimo da sexualidade somente dentro do
matrimônio sacramental.
Mas
o cardeal é forçado a construir esse "teorema" prescindindo da
história, que nos relata, ao contrário, fatos bem diferentes. A estrutura
doutrinal das últimas décadas é o fruto de uma exasperação do tema, que nasce
apenas em 1852, com Pio IX, e torna-se a sequência de encíclicas que, da Arcano Divinae Sapientiae (1880) a Casti connubii (1930), chega, embora
através do Vaticano II, à Humanae vitae
(1968), com a dura institucionalização do Código de Direito Canônico de 1917.
Se
a Familiaris Consortio certamente
pressupõe essa história, no entanto, ela já abre ao novo, do qual admite a
relevância, sem assumi-lo completamente. Desse ponto de vista, a Amoris
Laetitia deve ser lida em continuidade com a Familiaris Consortio, na tentativa de superar plenamente a
estrutura do século XIX da doutrina matrimonial, que já naquele texto tinha
começado a vacilar.
Caffarra utiliza uma hermenêutica da
descontinuidade muito perigosa, porque põe
em dúvida a legitimidade da evolução da doutrina, pedindo até que Francisco
retire o documento nas suas passagens mais inovadoras. Isso me parece contradizer a intenção – que Caffarra certamente não
quer negar – de garantir a continuidade
com a grande tradição eclesial e não só com a sua versão apologética e
enrijecida do século XIX.
2.
Uma rigidez maximalista em moral
O
segundo aspecto sobre o qual eu levanto as minhas perplexidades refere-se ao modo de considerar o "caráter
intrínseco do mal". Aqui parece-me que o discurso desliza para um
plano de abstração tão acentuado que todo circunstancial é julgado de modo
suspeito e com desconfiança. Não
surpreende que o cardeal Schönborn é acusado de uma suspeita condescendência
com o mal. Se algo é intrinsecamente mau, é preciso evitá-lo a todo o
custo.
Essa
abordagem, no entanto, parece ser apenas "pedagógica" e incapaz de
reconhecer os fatos. Tudo se torna
tarefa, e os fatos não têm qualquer relevância.
Essa abordagem, por si só muito clara, no entanto, é desprovida de relação com
a realidade. Ela impõe à realidade um modelo idealizado. Mas, como em toda idealização,
ela une à grande ideia cristã do matrimônio a agressão ao outro. O maximalismo é inevitavelmente agressivo,
até mesmo malgré soi [apesar de si mesmo].
![]() |
CHRISTOPH SCHÖNBORN Teólogo e atual Cardeal-Arcebispo de Viena - na Áustria |
3.
Uma falta de articulação entre plano moral e plano jurídico
Um
dos pontos que criam maiores dificuldades nas palavras do cardeal é o fato de ele pressupor como evidente e
descontada uma relação pré-moderna entre moral e direito. Que uma ação seja "intrinsecamente um
mal" – por exemplo, o homicídio, o furto, o adultério – não implica imediatamente que não se deva
levar em conta as "circunstâncias" em que a ação é cometida, assim
como o tempo em que tal ação assume relevância.
Eu
considero como um fato muito estranho que um homem de cultura jurídica como
Caffarra não leve em conta como a
correlação entre gravidade do crime e tamanho da sanção nunca pode ser
abstraída da história concreta dos fatos. Considere-se como a obstinação em
avaliar o "adultério" como fato intrinsecamente malvado impede que o
cardeal julgue adequadamente como a condição de adultério na sociedade fechada
era muito diferente da de uma sociedade aberta. O que é intrinsecamente mau continua sendo mau, sem dúvida. Mas muda a
sanção, e muda a relevância do tempo.
Como
bem sublinhou outro bispo – ainda não cardeal – como J.-P. Vesco, em nossa
sociedade, o adultério se transformou de "crime permanente" a
"crime instantâneo". Essa diferença, que me parece escapar
completamente de Caffarra, não depende,
em primeiro lugar, de categorias teológicas, mas das formas sociológicas, psicológicas e culturais dos homens e das
mulheres de hoje. Mas isso, no matrimônio, tem uma relevância original, que
o maximalismo teológico do século passado não conseguia mais reconhecer. Por
outro lado, isso está claro para os
teólogos medievais, que Schönborn
cita muito mais do que Caffarra.
4.
Uma dependência de categorias superadas e de modelos jurídicos datados
A
tradução que a sociedade fechada tradicional oferecia do matrimônio podia
tranquilamente sobrepor moral e direito, e pensar de modo maximalista em um
plano como no outro. A estratégia fundamental dessa leitura apologética,
inaugurada em meados do século XIX, foi a "ontologização"
do matrimônio, ou seja, a sua
transcrição em categorias metafísicas e racionalistas.
Mas
essa escolha não levou em conta que o sistema eclesial não pode suportar por
muito tempo um excesso de ontologismo sem gerar uma reação incontrolável no
plano da nulidade. De fato, quanto mais
insistimos na "ontologia do vínculo", mais somos forçados a tematizar
a "nulidade" como única saída diante dos problemas.
Por
um lado, a ontologia clássica se transforma em ontologismo apologético, mas,
por outro, a teoria dos capítulos de nulidade facilmente se torna uma forma de
"niilismo canônico".
Caffarra
me parece ser um dos poucos pastores a repetir com grande lucidez o modelo do
século XIX de resposta eclesial ao desafio do mundo moderno. Mas não percebe que a Amoris Laetitia pretende sair justamente desse modelo redutivo de
consideração da experiência à luz do Evangelho, embora não pretenda sair, de
fato, da grande tradição eclesial.
Ao
contrário, a Amoris Laetitia garante a continuidade à doutrina mediante uma
oportuna tradução e conversão, enquanto a posição de Caffarra – que ele
afirma ser clara e límpida – gera um contínuo curto-circuito entre doutrina
eclesial, experiência dos sujeitos e mediação eclesial.
Caffarra
parte da hipótese de que a Amoris
Laetitia traz confusão a uma condição substancialmente clara, enquanto eu
acredito que a Amoris Laetitia traz um início de esclarecimento em uma situação
que a Familiaris Consortio, começando
a alterar a lógica do século XIX, tinha tornado muito confusa e ambígua.
5.
Adultério pollakós léghetai.
Ontologismo dogmático e niilismo canônico se implicam mutuamente
O
cardeal Caffarra, que também é o fundador do Instituto João Paulo II [com sede em Roma, Itália] onde matrimônio
e família deveriam ser estudados a fundo, parece
não querer ouvir outra voz senão a de João Paulo II. Assim também fazem, em
pleno acordo com o fundador, os principais professores atuais desse instituto,
todos unidos nessa surpreendente hermenêutica
da descontinuidade diante da Amoris
Laetitia.
Surpreenderia
muito quem convidasse Caffarra – ou um dos professores do instituto mencionado
– a apresentar oficialmente o texto da Amoris
Laetitia. Quem rejeita o texto no seu coração pulsante – ou seja, na saída
do modelo do século XIX de doutrina do matrimônio – certamente não pode
apresentá-lo oficialmente ao clero, se não corroborando aquela
"hermenêutica da ruptura" que, até recentemente, esses mesmos
professores apresentavam como o mal pior.
Confuso, aqui, não é o texto
da Amoris Laetitia, mas o olhar de
quem não capta o sentido epocal dessa passagem de conversão eclesial e pretende
usar o Catecismo da Igreja Católica como um escudo contra a conversão de que a
Igreja precisa.
Eu
acredito que essa reação coloca uma questão decisiva: a descontinuidade e a ruptura não são as promovidas pela Amoris Laetitia, mas as que brotam da
pretensão segundo a qual, a partir da fundação do Instituto João Paulo II em
diante, e até o apocalipse, alguém possa monopolizar a teologia do matrimônio,
forçando-a em uma visão unilateral,
clerical, apologética e maximalista da tradição.
![]() |
ANDREA GRILLO Teólogo italiano autor deste artigo |
Eu
acredito que o cardeal Caffarra, com grande clareza, evidenciou os limites
dessa breve tradição maximalista, com aspectos de fundamentalismo, da qual a Amoris Laetitia soube tomar a justa
distância. É natural e compreensível que Caffarra e sucessores não estão
contentes com isso. No entanto, o fato de
eles pretenderem ditar a Schönborn e a Francisco a "agenda
matrimonial" parece ser no mínimo um excesso de zelo, que beira
perigosamente uma falta de senso de limite e que, às vezes, pode chegar até a
uma espécie de obscuro desespero sobre o papel que o Espírito Santo desempenha
na vida da Igreja.
[Há muitos na Igreja que pensam ser os monopolizadores do
Espírito de Deus e os únicos e autênticos “guardiões” da verdadeira doutrina
cristã! Quanta soberba, quanta vaidade, quanto orgulho, quanta pretensão e falta
de humildade!]
* ANDREA
GRILLO é teólogo católico leigo italiano
especializado em Liturgia e Sacramentos. Professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de
Santa Giustina, de Pádua. O seu curriculum
vitae – em italiano – pode ser acessado clicando aqui.
**
Amoris Laetitia
[A alegria do amor] é o título da
exortação apostólica pós-sinodal de Papa Francisco. Esse documento pontifício
foi publicado a fim de recolher as reflexões realizadas em dois sínodos sobre o
amor na família. Tenha acesso a este importante documento (para baixar,
imprimir, copiar e ler), clicando aqui.
Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. Acesse a versão
original deste artigo, clicando aqui.
Comentários
Postar um comentário