“Diversidade é vida – Uniformidade é a morte”
O mais fácil é atacar e diminuir, especialmente
nos campos dolorosos
Entrevista
com Leandro Karnal
Historiador,
antropólogo, filósofo e professor da Unicamp – é um irreverente pensador do
comportamento humano passado e presente.
Renata Valério
de Mesquita
Leandro Karnal dissemina o conceito de tolerância
ativa, postura que celebra a pluralidade de opiniões, em vez de combatê-la ou
simplesmente aturá-la
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LEANDRO KARNAL |
Quando
o ensino religioso se tornou lei no
Brasil, em 1989, o historiador, antropólogo, filósofo e professor Leandro Karnal logo se
mobilizou para evitar que a aula se tornasse espaço de pregação de doutrinas.
Produziu, com a colega Elaine Moura,
uma série de livros didáticos com reflexões sobre história da religião,
antropologia religiosa e tolerância
ativa. Embora não seja novo, este último conceito propõe que não basta tolerar a existência de outros
com opiniões diferentes; é preciso achar fundamental que haja diversidade de
credos, culturas e etnias para a riqueza do mundo. Nesta entrevista, Karnal
estende o debate para o fundamentalismo,
a internet e a escuta.
PLANETA –
Diante dos extremismos político, religioso e a intolerância aos estrangeiros,
dentro e fora do país, é possível pensar a tolerância ativa como uma solução?
KARNAL – A tolerância ativa é uma
utopia, e a utopia serve para reformar a prática atual. A utopia tem a função de estabelecer um padrão para a mudança. A
intolerância é um crime que deve ser combatido, e a tolerância passiva é a postura
dominante hoje. Nesse contexto, a
tolerância ativa é a meta. Eu sou A, ele é B, e o mundo é melhor por causa
disso. “A uniformidade é a morte”,
como diz Octavio Paz – e Paz era
considerado conservador. Diversidade é
vida. Mas a palavra tolerância, em
si, tem uma raiz terrível. Tolerância vem do latim e significa “sofrer resignado”. Não é uma boa palavra. “Tolerante” é alguém que baixa a cabeça.
A tolerância ativa dá um sentido de que, exatamente porque domino a minha
cabeça, posso baixá-la, ou pelo menos não deixá-la se abater.
Teria
outra palavra melhor?
KARNAL – Você não deve se ater à etimologia, porque vai rejeitar as palavras.
O que é um fulano entusiasmado? En + theos,
“em Deus”. O que é alguém fanático?
É alguém que está dentro do templo. O que é alguém profano? Aquele que está
na frente do templo. Ou seja, as
palavras não podem ser consideradas em si, mas, nesse caso, ela mostra uma
admiração indireta que temos pela força da intolerância. Pagamos para ver alguém batendo em alguém sem motivo – o que é uma
patologia curiosa. E quem bate mais é o macho alfa, não é o tolerante. A tolerância é vista como feminina, fraca.
Tolera quem não tem condições de mudar. Quem tem condições muda. Então, um dos motivos para a intolerância que
está na moda é que hoje ela é sinal de
força e de ação. E todos os manuais de autoajuda indicam que você deve ser
afirmativo, colocar sua opinião, olhar no rosto. Porque é sinal de decisão, de
clareza, de caráter, e assim por diante.
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AS PESSOAS ESTÃO COM MUITA DIFICULDADE EM OUVIR OS OUTROS ! ! ! QUASE NINGUÉM DESEJA COMPARTILHAR, DEBATER DE VERDADE. |
Parece
que as pessoas não conseguem mais conversar e expor cada um o seu lado. Ou isso
é uma impressão?
KARNAL – Não, não estão conseguindo mesmo. Não é fácil ouvir as pessoas. Não é fácil contrapor-se
às ideias. O mais fácil é atacar e
diminuir – especialmente nos campos dolorosos, como a política. A sociedade
hoje não tolera a divergência, não escuta o outro, e isso é um comportamento
autista. Falei isso em uma palestra. Aí, levantou a mãe de um autista, começou
a chorar e disse que não posso usar essa palavra. Respondi a ela em latim: “Quod erat demonstrandum” (“Como queria demonstrar” – ou seja,
aquela mãe com essa atitude comprovou o que Karnal havia afirmado!). Eis o autista contemporâneo! Ela não ouviu e só pegou aquilo que a toca.
Aí, em outra ocasião substituí “autista”
por “esquizofrênico” e a Sociedade
Brasileira de Psicanálise me escreveu dizendo que não posso usar o termo dessa
forma. Agora eu pergunto: a gente pode
usar alguma palavra no mundo?
Por
que as posições se mostram mais polarizadas atualmente?
KARNAL – Uma professora de gênero na
Unicamp dava uma palestra e um aluno da sala perguntou quantos gêneros sexuais
havia no planeta Terra. Ela parou, pensou e respondeu: “Provavelmente, 7
bilhões”. Mas a grande questão é que
tanto o pensamento conservador como parte da esquerda querem produzir uniformização. Porque a
uniformização tranquiliza o pensamento. Quando você divide o mundo de maneira maniqueísta, entre petralhas e
coxinhas, estabelece uma tranquilidade de pensamento. Porque não é mais
necessário passar pelo debate – você tem apenas dois polos, o preto e branco.
É
mais fácil, não tem de pensar…
KARNAL – A liberdade à qual estamos condenados é incômoda. Ela causa a
má-fé, quer dizer, vou atribuir a decisão a terceiros. Não é fácil viver na incerteza, em liberdade. É por isso que hoje cresce tanto a sedução do
fundamentalismo. Em um mundo em que tudo é mais ou menos líquido,
como diz (o sociólogo polonês) Zygmunt
Bauman, o fundamentalista só
transmite certezas. Isso é muito sedutor.
Mas
essa tendência não existia antes?
KARNAL – As pessoas não tinham
acesso à informação. Imagine o que eram as bibliotecas medievais,
comparativamente, com a facilidade de acesso da internet. Essas confusões são contemporâneas. E são positivas, porque o saber era muito concentrado, pouco
democrático, muito desequilibrado há algum tempo. Derrubamos o discurso da
autoridade e instituímos a terra da liberdade total, em que tudo é uma questão
de opinião. Isso é mais forte nas ciências humanas do que nas exatas. Então, como ser tolerante com o outro, se a
verdade é opinativa? Todo mundo pode fazer do que jeito que quiser. Toda
escolha é validada pelo sujeito, e não mais pela sociedade.
Há 300 anos, ninguém escolhia sua profissão, nem com quem ia casar. Hoje
podemos escolher. E, curiosamente, não nos tornamos mais felizes – nos tornamos mais livres para escolher a
infelicidade.
Fonte: Revista PLANETA –
Entrevista
– Edição nº 520 – 01/06/2016 – Internet: clique aqui.
“Vivemos uma guerra civil verbal”
Entrevista
com Jorge Forbes
Psicanalista
e médico psiquiatra, preside o Instituto da Psicanálise Lacaniana e é um
pensador sobre as novas formas de viver na pós-modernidade
Renata Valério
de Mesquita
Respeitado estudioso de tendências mundiais, o
psicanalista Jorge Forbes chama à reflexão sobre a falência das verdades
estanques e a busca das pessoas por grupos que tirem delas a responsabilidade
de pensar por si mesmas
Enquanto
o surto precoce da gripe H1N1 preocupa os brasileiros, o psicanalista e psiquiatra Jorge Forbes chama a atenção para outro
tema, uma crise social do país que, a seu ver, é tão importante ou mais que a
gripe: a falta de diálogo entre as pessoas, que
estão aferradas a verdades estanques.
“Essa crise social pega
muito mais pessoas e o país está dividido, mas não temos vacina para isso”, comenta. Ele diagnostica o
problema como uma questão da vida pós-moderna, mas ressalta que as reflexões
sobre as mudanças socioculturais deste momento ainda são muito esparsas e
pequenas na imprensa e no universo acadêmico. “Estamos muito atrasados para
gerar conceitos que possam captar uma nova realidade do ser humano.” Forbes
comenta essas questões a seguir.
PLANETA –
Ultimamente temos visto muitas brigas em família e entre amigos quando o tema é
política. Está faltando diálogo ou isso é uma forma de diálogo?
FORBES – Concordo que estamos
vivendo uma crise de tolerância como nunca dantes vista. Ela fica clara pela desistência do diálogo em todas as camadas.
Pessoas muito próximas estão preferindo não abordar mais o assunto política
porque sabem que, se o abordarem, vão ter problemas sérios. O que vemos é que estamos em uma guerra
civil verbal. A um passo de uma guerra civil carnal. E quando o diálogo termina, o próximo passo é a agressão física.
Por essa percepção, a revista resolve dizer “opa, gente, peraí, vamos refletir”.
Já
vimos agressões físicas em manifestações diversas.
FORBES – Sim, já está ocorrendo. Se existe tal violência que justifica
deletar uma pessoa, dar um murro no outro, separar um casal e fazer irmãos
brigarem, é porque as pessoas estão aferradas a verdades estanques. Hoje,
porém, não existe mais uma só verdade. E isso é uma tendência da pós-modernidade.
As verdades são todas provisórias.
(O psicanalista francês) Jacques Lacan
disse que a maior verdade que você pode alcançar é a “verdade mentirosa”.
Mas
em algum momento existiu uma verdade absoluta ou apenas se acreditava nela?
FORBES – Até uns 40 anos atrás, o
laço social era vertical e padronizado. E quando você padroniza, tem meios de
estabelecer o verdadeiro e o falso, uma verdade superior. Não tínhamos outra
visão. Agora, na pós-modernidade, é evidente que verdade é um construto lógico. Sendo assim, sempre há mais de uma
forma de construir uma verdade. Por exemplo, os idiomas. Quando você olha por
um único binóculo, acha que o mundo é aquilo. Casa é casa, carro é carro.
Quando aprende uma segunda língua, aprende uma segunda visão de mundo. Uma
terceira língua, uma terceira visão. Estamos
entrando em uma época em que a verdade não é mais referência estável ao laço
social. Em todos os níveis o laço social será estabelecido por certezas não demonstráveis. Por exemplo, não há
nenhuma razão possível, nenhuma verdade que explique o porquê de você ter um
filho, muito menos por que morreria por ele. Mas tente fazer uma política sem a
possibilidade de explicação. Então, a
política tem de ser totalmente reinventada.
Como
reformar esse modelo político?
FORBES – Não há nada a melhorar no
sistema que nos levou à situação atual no Brasil. Tem de jogar fora. Mas qual
vai ser a política? Quem descobrir vai ganhar um Prêmio Nobel. Vamos ter de descobrir isso antes de nos
matarmos. E acho que o brasileiro já está sensível à questão. A “turma do deixa disso” está entrando em
campo. Mas precisa ter argumentos melhores para apontar um caminho político
possível que não seja a guerra.
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RAÚL CASTRO CONVERSA COM BARACK OBAMA durante histórica visita do Presidente dos Estados Unidos à Cuba Segunda-feira, 21 de março de 2016 |
Há
algum exemplo político de adequação à pós-modernidade?
FORBES – Já vemos alguns testes
dessa reinvenção. Um exemplo disso é o discurso do presidente Barack Obama em Cuba. Ele escolheu se
mostrar como um líder que não fala desde o local do poder, da potência e da
arrogância, do “eu sei mais”. Ele fez um discurso
a partir das escolhas dele. Quando ele diz frases como “vou dizer o que
penso que é melhor para um país”, é como se estivesse dizendo: “Sei que a gente
pensa diferente – se não pensássemos não estaríamos brigados esses anos todos. Mas tenho o direito de dizer a vocês o que
penso, não tenho? E vocês, por sua vez, de dizerem o que pensam”.
Diante
da polarização, escolher um lado é uma necessidade humana?
FORBES – Não. Os lados deveriam ser escolhidos provisoriamente. A tendência
da pós-modernidade é que as pessoas se
reúnam em grupos e os desfaçam depois de um tempo. Quando você faz uma
escolha, quer compartir seu prazer, a expressão dessa escolha, com outras
pessoas. Por isso há grupos que gostam de carros antigos, de viajar para a Disney,
de filosofia…
Quando
esses grupos se tornam nocivos?
FORBES – Quando aquilo que, num
primeiro momento, é levado para um compartir vira, num segundo momento, uma fortaleza, um grupo de
defesa. A instabilidade da
verdade faz as pessoas buscarem transformar grupos de pertencimento em grupos
radicais. Quando se tem dez coisas e se escolhe uma, a única certeza que
tenho é que perdi nove. O que num momento era opção passa a ser verdade
absoluta. E a preguiça de se
responsabilizar por seus desejos leva as pessoas a querer ter o conforto do
grupo. Se escolhe uma religião e existe outra, quer dizer que talvez outra
pessoa possa estar errada. E ela já escolheu uma religião para não estar
errada. Essa foi a resposta dos extremistas do Estado Islâmico. Dá muito mais trabalho defender uma postura
mais equilibrada. É bem mais tranquilo ter um pastor dizendo o que você
deve fazer, pensar, comer e vestir. Uma
escolha é sempre um ato arriscado.
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