As mulheres, São Paulo e a Igreja
Paulo e as mulheres:
a Igreja condicionada por alguns versículos
Vito Mancuso
Jornal
“Avvenire” – Roma
11-09-2016
ROSANNA VIRGILI - biblista italiana |
Eu
acho que a professora Rosanna Virgili
errou completamente o alvo ao criticar duramente, no jornal Avvenire do dia 1º
de setembro [acesse o artigo em italiano, clicando aqui],
o meu artigo redacionalmente intitulado "O Islã, o cristianismo e a polêmica sobre o burkini"
[acesso-o, clicando aqui],
publicado no jornal La Repubblica do
dia 27 de agosto passado.
O objetivo da minha
contribuição, de fato, não era, de modo algum, a exegese e a hermenêutica do
controverso pensamento de São Paulo sobre as mulheres, mas sim uma reflexão sobre
a diferença entre Ocidente e Islã a partir de três fatos inequívocos:
1)
que, durante séculos e séculos, no mundo ocidental e no mundo islâmico, houve
uma flagrante submissão da mulher ao poder masculino;
2)
que, hoje, no mundo ocidental, essa submissão da mulher não existe mais;
3)
que o vestuário é uma clara indicação dessa evolução, já que, primeiro, as
mulheres ocidentais não mostravam pernas e braços em público e usavam o véu na
igreja, enquanto, hoje, agem totalmente ao contrário.
A
meu ver, a submissão feminina do passado
não pode deixar de ter uma raiz também no texto que, durante esses séculos, era
o ponto de referência indiscutível, isto é, a Bíblia, incluindo o Novo
Testamento, assim como, hoje, a condição da mulher no mundo islâmico também se
explica com base no Alcorão.
Pretendendo
negar essa minha abordagem e afirmar, em vez disso, que a submissão da mulher
não tem fundamento bíblico, Virgili
me acusa de informações incorretas, apresenta alguns textos de São Paulo e,
depois, conclui: "Não se pode negar uma presença de autoridade e em nada
‘submissa’ das mulheres nas comunidades cristãs, que usavam ou não o véu quando
rezavam, ou que se calavam durante as assembleias".
Assumindo
beneficamente tal afirmação, acho que é
preciso perguntar: mas depois o que aconteceu? Como é que essa presença de
autoridade e em nada submissa das mulheres nas comunidades cristãs desapareceu
de repente quase totalmente? Como a
hierarquia eclesiástica do cristianismo pôde se configurar unicamente como
masculina?
A
menos que se sustente que a tradição eclesiástica operou tal leitura desviada
da Bíblia a ponto de se configurar como traição, é evidente que a leitura tradicional tinha a
possibilidade de encontrar na Bíblia não só o que Virgili afirma sobre o papel
das mulheres, mas também o seu contrário.
E é
exatamente o caso da passagem de São Paulo em 1Coríntios 11,3-10 por mim citado no artigo em questão e que à
mentalidade da época apresentava três conceitos específicos:
1)
que a mulher está submetida ao homem, assim como o homem está submetido a
Cristo, e Cristo está submetido a Deus, de acordo com uma clara hierarquia
ascendente;
2) que
a mulher não apenas está submetida, mas é até finalizada ao homem, no sentido
de ter sido criada para o homem, do qual é chamada a ser a "glória";
3)
que a mulher deve cobrir a sua cabeça em sinal de aceitação da autoridade à
qual está submetida.
VITO MANCUSO - teólogo italiano |
O
fato de Paulo dizer outras coisas em outros lugares diz respeito ao seu
pensamento em si e por si mesmo, não à história
dos efeitos produzidos por algumas de suas afirmações. Há séculos de história repletos de subordinação feminina, há um
preciso direito matrimonial que sancionava a inferioridade da mulher em relação
ao marido, testemunhando os efeitos produzidos por um texto como 1Cor 11,3-10.
Portanto,
não tem nenhum sentido, no contexto do meu artigo, dizer que São Paulo não
pensava sempre assim, porque o mérito do
meu raciocínio não dizia respeito a São Paulo em si, mas à evolução do Ocidente
em relação à condição feminina.
Virgili, depois, me acusa de ter
cortado indevidamente a passagem de 1Coríntios e de fazer "má informação
bíblica", mas se trata de uma acusação infundada e que, aliás, pode ser
dirigida novamente a ela mesma.
É
infundada porque os oito versículos paulinos por mim reproduzidos na íntegra,
sem qualquer corte mínimo, e porque os versículos que se seguem, nos quais
Virgili insiste (11-12), não mudam em nada a questão da submissão feminina em
nível eclesial: a paridade ontológica
proposta por São Paulo em nível místico naqueles versículos não produz para ele
a paridade eclesiástica.
Prova
disso são os versículos seguintes, 13-16, nos quais São Paulo retoma o tema da
diferença homem-mulher para dizer que a mulher deve ter a cabeça encoberta, e o
homem não.
A
acusação de cortes indevidos, além disso, pode ser dirigida novamente a
Virgili, em primeiro lugar porque ela
não cita os versículos de 1Cor 11,13-16 para completar a perícope em questão,
e, acima de tudo, porque, assumindo o papel de advogada de defesa de São Paulo,
ela recorda alguns textos paulinos (1Co 7; Ef 5; Gl 3, 28), mas omite os mais embaraçosos a propósito das
mulheres, como 1Cor 14,34-35 e 1Tm 2,11-15.
Eis
o primeiro [1Cor 14,34-35]: "Que as
mulheres fiquem caladas nas assembleias, como se faz em todas as igrejas dos
cristãos, pois não lhes é permitido tomar a palavra. Devem ficar submissas,
como diz também a Lei. Se desejam instruir-se sobre algum ponto, perguntem aos
maridos em casa; não é conveniente que a mulher fale nas assembleias"
[versão da Bíblia Pastoral].
E
eis o segundo [1Tm 2,11-15]: "Durante
a instrução, a mulher deve ficar em silêncio, com toda a submissão. Eu não
permito que a mulher ensine ou domine o homem. Portanto, que ela conserve o
silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi
seduzido, mas a mulher que, seduzida, pecou. Entretanto, ela será salva pela
sua maternidade, desde que permaneça com modéstia na fé, no amor e na santidade".
É a
partir de textos como esse que provém, na
arte ocidental, a frequente representação da Serpente tentadora com o rosto de
mulher, assim como a estruturação institucional masculina da Igreja, por
cuja mudança as teólogas e as biblistas contemporâneas lutam justamente,
teólogas e biblistas que são uma clara contradição do pensamento paulino,
porque o Paulo histórico não teria lhes
permitido ensinar.
Virgili afirma que "não há exegese sem hermenêutica". É
muito verdade, mas a questão decisiva diz respeito à intenção que anima a hermenêutica. Porque, durante muitos séculos,
os textos citados acima eram fielmente respeitados, e hoje, em vez disso,
causam problema para a consciência, a ponto de nos envergonhar, e preferiríamos
evitar isso?
Virgili
remete ao Concílio Vaticano II, mas se trata de uma resposta parcial, porque o
Vaticano II, por sua vez, foi a consequência de um processo que iniciou muito
antes e que se chama de modernidade. Foi
a modernidade que fez evoluir a consciência
ocidental à paridade homem-mulher e, portanto, que fez sentir a
inaceitabilidade de algumas expressões bíblicas, incluindo as de São Paulo
mencionadas acima.
E também foi a modernidade
que marcou a maior diferença entre mundo ocidental e
Islã, incluindo o vestuário feminino. O Vaticano II chamou a
modernidade de "sinais dos tempos" e viu nela o trabalho do Espírito
de Deus que sempre auxilia a evolução do mundo.
Ser
moderno em âmbito teológico não significa ser genericamente progressista. Ao
contrário, significa conferir o primado não mais à autoridade do texto, mas ao bem do ser humano, a serviço do qual se chega até
a curvar o texto bíblico e o patrimônio doutrinal da Igreja, porque se
considera que não há nada de mais
precioso do que a vida humana e o seu florescimento.
É a
partir daí que nasce a intenção que alimenta aquela hermenêutica capaz de uma
exegese nova e mais libertadora, que Rosanna
Virgili enfatizou na sua infundada crítica ao meu artigo.
Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto.
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