Reforma do Ensino Médio em Debate
“Era necessária uma consulta prévia da
reforma do ensino”
Entrevista
com Carlos Roberto Jamil Cury
Filósofo
e Educador
Victor Vieira
Um dos principais especialistas em legislação
educacional do País
critica uso de Medida Provisória para mudar ciclo final
CARLOS ROBERTO JAMIL CURY |
A
pressa na reforma do ensino médio deve ser a principal inimiga do governo
federal em seu projeto de salvar essa etapa, considerada uma das mais
problemáticas da educação básica. Isso é o que pensa Carlos Roberto Jamil Cury, um dos principais especialistas em
legislação educacional do País. O uso da Medida Provisória (MP) – sem diálogo
prévio com professores e estudantes – vai aumentar a dificuldade para tornar
real o projeto. “O currículo também precisa ser flexível à expectativa dos
jovens de serem ouvidos antes sobre o que querem”, afirmou, em entrevista ao jornal
O Estado de S. Paulo.
Como
o senhor avalia a reforma do ensino médio proposta?
Carlos Roberto: Fiquei
assustado por isso ter vindo em MP. O governo poderia ter feito por projeto de
lei, em que se iria, evidentemente, discutir com mais vagar. Esta é a 16.ª reforma do ensino médio no
País desde 1854 e ainda não resolvemos o problema. É impossível debater
isso em 120 dias (prazo máximo para a tramitação da MP no Congresso). São
necessárias mudanças, mas temos de evitar repetir erros do passado. Faltou uma
consulta prévia não só com especialistas, mas com as redes. Se isso é imposto, os professores podem não
se sentir motivados a implementar. É diferente do Plano Nacional de
Educação, em que houve amplo debate. Além disso, a divulgação à sociedade não precisava ter sido feita dessa forma
atabalhoada, com pouca clareza e muitas dúvidas. Isso cria um clima de
insegurança nas famílias. O ensino médio é um momento de definições na vida
pessoal e social do estudante e demanda cuidados.
Há
chance de novas ondas de protestos e ocupações de estudantes pelo País?
Carlos Roberto: Haverá protagonismo dos
estudantes no Congresso, que vão pressionar a tramitação da MP. Sobre
ocupações, é difícil dizer de antemão, porque a reforma não deve atingir as
atuais turmas do ensino médio. A reorganização em São Paulo (proposta de 2015,
que previa separar alunos por ciclos da mesma faixa etária) teve perfil
semelhante à de agora. Era defensável pedagogicamente. Mas, sob o aspecto de
gestão, foi um desastre.
O
currículo flexível é mesmo o caminho para o ensino médio?
Carlos Roberto: Certamente, mas a proposta
precisa de participação maior dos principais interessados, e não vir da
burocracia estatal. O currículo também precisa ser flexível à expectativa dos
jovens de serem ouvidos antes sobre o que querem. Se a reforma traz a voz do
sujeito, ecoa com mais tranquilidade. A
flexibilidade deve ser feita pelos Estados, pois o País é diverso, mas com
diretrizes claras do Conselho Nacional de Educação, para que haja fundamentação
pedagógica. Currículo flexível não pode
se tornar precariedade. Também vejo risco de discriminação, quando se cria
um percurso para o ensino profissional e outro para as demais áreas
(Linguagens, Matemática, Ciências Humanas e Ciências da Natureza). É como se o
aluno do ensino técnico não tivesse a necessidade desses outros conhecimentos.
Como
o senhor avalia a aposta no ensino integral?
Carlos Roberto: O prolongamento do tempo na
escola, do ponto de vista pedagógico, é muito bom. Mas, quando se olha a
situação real, essa faixa de jovens
entre 15 e 17 anos não é homogênea no País. O jovem de bairro vulnerável não é o mesmo que o de classe média alta.
Se você amplia a carga horária para sete horas diárias, como vai fazer o aluno
que estuda e trabalha? Isso pode aumentar a evasão. Outra questão importante é
que boa parte dos jovens estuda à noite.
No passado, em que o ensino médio era praticamente exclusivo para pessoas de
mais renda, funcionava. Nas últimas
décadas, a escola se democratizou e passou a receber outros grupos mais pobres.
Foi aí que o ensino médio revelou suas contradições.
A
possibilidade de excluir Artes e Educação Física do currículo obrigatório causa
polêmica. O senhor acredita que há excesso de disciplinas no ensino médio?
Carlos Roberto: Faz sentido. Treze
disciplinas para a carga horária atual nem sempre atende às necessidades de dar
todo aquele conteúdo. Há certo consenso de que isso é complicado. Mas, por
outro lado, esse jovem entre 15 e 17
anos ainda não tem suficiente clareza do caminho a seguir. Na universidade,
vemos muitos jovens que entram em um curso e depois trocam. De algum modo,
essas 13 disciplinas dão ao aluno a possibilidade de saborear esse leque de
conteúdos – é uma fase de experimentação. Logo após a Olimpíada, vamos cortar a
Educação Física? E a Arte é tão dispensável? Não acredito que só as disciplinas utilitárias possam ter espaço. O
fato de o governo ter voltado atrás mostra que eles capturaram na sociedade uma
recusa a esse corte.
Como
essa mudança afeta a preparação dos professores?
Carlos Roberto: Esse tipo de reforma deve
ter ligação mais orgânica com a formação nas universidades. A licenciatura deve se conectar com a educação
do século 21 e a realidade da sala de aula, cada vez mais plural. Outro
ponto importante: não é possível contratar alguém com notório saber e acreditar
que é capaz de traduzir pedagógica e didaticamente os conteúdos. Isso exige
treinamento. Também é urgente tornar a carreira
docente mais atrativa.
E
quais são os outros desafios das redes para o ensino médio?
Carlos Roberto: A emenda constitucional 59,
de 2009, prevê para este ano a obrigatoriedade de colocar todos entre 15 e 17
anos na escola (1,6 milhão de jovens
nessa faixa etária estão fora da sala de aula). Temos ainda de resolver a
questão do acesso. Para isso, precisamos
aumentar os recursos e aperfeiçoar a gestão. Também é necessário melhorar os insumos: garantir bons
laboratórios e salas.
PERGUNTAS & RESPOSTAS
1.
As mudanças valem para as escolas públicas e particulares?
Resposta: Ambas terão de adotar o
conteúdo da Base Curricular, seja durante todo o ensino médio (regular) ou na
1ª metade, deixando o restante para as ênfases (currículo flexível). Mas o
Ministério da Educação (MEC) fez questão de ressaltar que a mudança de modelo
ainda é opcional.
2.
Considerando a separação por eixos temáticos (incluindo ensino
profissionalizante) e por escolha, como ficará a atribuição de aula ao docente?
Resposta: Depende do sistema de cada
Estado. Os governos poderão contratar professores de áreas correlatas para dar
aula. Exemplo: um professor de Física para Matemática.
3.
Imagine uma escola em que só dois alunos optem pela área de Matemática. Como
será possível dar aula para eles? Vão ter de mudar de escola?
Resposta: Poderá haver escola que vai
oferecer anos iniciais e apenas uma ou duas áreas. Um aluno que quer seguir na
área de Matemática, por exemplo, poderá ter de mudar de instituição, caso o
colégio em que estude não dê a modalidade.
4.
Se o aluno escolher a área e não gostar, pode mudar?
Resposta: Sim. Ele tem flexibilidade
para mudar quantas vezes quiser, mas não poderá fazer duas áreas ao mesmo
tempo.
5.
Como ficará na prática quem não adotar o regime integral?
Resposta: Ainda terá de cumprir pelo
menos 2,4 mil horas totais de ensino médio, optando por separar metade do
programa (1 ano e meio) para oferecer a carga optativa ou por seguir no ensino
regular, cumprindo a Base Curricular Comum.
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