Uma rara autocrítica de um empresário
RISCO DE EXTINÇÃO
Entrevista
com Philipp Schiemer
Presidente
da Mercedes-Benz no Brasil
Marcelo Sakate
Em autocrítica incomum, o presidente da Mercedes-Benz
no Brasil
admite que o setor viveu com subsídios, mas reconhece
que é um modelo falido e alerta: a indústria brasileira
poderá sumir
O
alemão Philipp Schiemer, 52 anos, retornou ao Brasil em 2013 para assumir a
presidência da Mercedes-Benz. Naquele ano, o mercado brasileiro era o maior do
mundo para a empresa alemã, com vendas anuais de 40.000 caminhões. Agora, a
produção nacional encolheu mais de 60% e retrocedeu aos níveis de uma década
atrás.
Péssima
notícia para Schiemer. Péssima notícia para o Brasil, uma vez que as vendas de
caminhões funcionam como um termômetro da economia ao refletir a disposição das
empresas de ampliar a capacidade de produção.
Diante
desse quadro, o executivo comandou a redução de tamanho da Mercedes brasileira,
de 14.000 para 10.900 trabalhadores, e outros 1.400 serão desligados nos
próximos dias. “O setor automotivo – e eu não excluo a Mercedes – deveria ter
percebido que o modelo de negócios com base em incentivos reflete o Brasil
antigo, de mercado fechado, protecionista. Pode funcionar hoje, mas não vai
garantir a sobrevivência nem o crescimento da indústria”, diz Schiemer.
Para
ele, é preciso repensar o modelo de indústria e, se nada for feito, as
consequências serão “dramáticas”. A seguir, a entrevista.
Como
o setor de ônibus e caminhões chegou a uma crise tão grave?
Philipp Schiemer: O Brasil cresceu fortemente
até 2010, 2011. Com o boom das commodities [produtos
agrícolas, minerais e pecuários exportados] e as finanças públicas mais ou
menos equilibradas, o governo tinha dinheiro para gastar. Quando veio a crise
mundial, o Brasil se saiu muito bem. Ali estava o início dos problemas.
Criou-se uma ilusão. Achava-se que o país poderia tudo.
O
governo interferiu na economia para recuperar a confiança do setor privado, e
deu certo no primeiro momento. Mas esqueceu
a regra de que, quando a crise acaba, ele tem de sair e deixar que os negócios
funcionem. Passou a acreditar que, quanto mais interferisse no setor
privado, melhor seria.
Adotou
uma política econômica totalmente errada.
Baixou os juros sem fundamento, deu isenção tributária a vários setores. Era
possível saber que, em algum momento, aquele modelo de estímulo ao consumo
bateria no teto. As pessoas já tinham comprado geladeira e carro e estavam
endividadas. O crescimento teria de vir
do aumento de produtividade, de incentivos para projetos em infraestrutura,
para criar um novo ciclo de investimento e de crescimento.
A
indústria automobilística beneficiou-se dos incentivos e agora reclama deles?
Philipp Schiemer:
Tínhamos a
convicção, naquele momento, de que a ajuda do governo seria o certo. As pessoas
podem dizer “a Mercedes também se beneficiou”, e é verdade. Deveríamos ter pressionado o governo por
reformas no lugar de incentivos. O setor automotivo – e eu não excluo a
Mercedes – precisava ter percebido que aquele modelo de negócios, que ainda é o
atual, reflete o Brasil antigo, de mercado fechado, protecionista. Deveríamos
ter entendido que não funcionaria mais. Pode funcionar hoje, mas não no futuro.
E por quê? Porque hoje o mundo é global,
não é mais local.
PÁTEO DA FÁBRICA DA MERCEDES-BENZ EM SÃO BERNARDO DO CAMPO (SP) |
Quais
são as perspectivas se o país insistir no modelo atual?
Philipp Schiemer:
A indústria
brasileira corre o risco de ser extinta. Do
jeito como as coisas estão, nenhuma indústria – e não apenas o setor automotivo
– vai ter futuro no Brasil. Não é possível ser competitivo com um mercado
fechado. Com o novo governo, esperamos, será mais fácil conversar do que com o
anterior, que era conservador e protecionista. A inflação voltou, os juros
tiveram de subir também. Quem vai comprar caminhão ou ônibus com 14% de juros?
Quem
faz um investimento? A decisão de compra
no nosso setor tem a ver com matemática. É investimento. Vai trazer retorno?
Se tenho confiança no futuro, eu invisto. Se não tenho e o investimento é alto,
não compro. Com a economia em queda e a desconfiança em alta, como tomar
decisões para os próximos três, quatro, cinco anos? É muito difícil.
Em
2011, o mercado de caminhões chegou a ser de 170.000 unidades vendidas em um
ano. Agora, está em 50.000. Isso não reflete o potencial do mercado. A idade média da frota de caminhões é vinte
anos, enquanto na Alemanha é sete. O mercado é promissor, mas será uma
recuperação lenta.
O
senhor vem de um país aberto e exportador. Não demorou [demais] a perceber que o modelo de indústria
fechada e com base em incentivos pontuais não teria futuro?
Philipp Schiemer:
Quando
cheguei, em 2013, as medidas do governo já estavam em andamento. As dificuldades
do mercado estavam começando. Só depois percebemos que a crise seria longa e
duradoura. Desde então, tenho me pronunciado e discutido o assunto dentro e
fora da fábrica. O objetivo não é só abordar os problemas do nosso setor, mas
de toda a economia brasileira.
O
empresário brasileiro compartilha da sua autocrítica segundo a qual os
incentivos podem representar a morte a longo prazo?
Philipp Schiemer:
Percebemos
um início de mudança de pensamento. Sabemos que o modelo atual não tem futuro.
O mercado brasileiro tem grande potencial e pode ser ampliado, mas não com a
economia fechada. A indústria não
consegue viver apenas com o mercado interno.
O
que o Brasil deve fazer para acelerar a retomada do crescimento econômico?
Philipp Schiemer:
Precisamos
de reformas. O ajuste fiscal é
primordial. É necessário que a reforma da Previdência seja aprovada
rapidamente, para sinalizar que o Brasil é um país confiável para investimentos
de longo prazo [neste ponto não há
consenso, leia uma outra opinião e análise, clicando aqui].
Isso permitirá reduzir a inflação e as taxas de juros; dessa forma, a confiança
do investidor será retomada, o que vai levar ao crescimento da economia e,
consequentemente, do mercado de caminhões e ônibus. Os investimentos em
infraestrutura também seriam um forte incentivo.
E
para aumentar a produtividade industrial?
Philipp Schiemer:
Temos de
começar pela desburocratização. No
Brasil gastamos quatro vezes mais do que na Alemanha para atender às obrigações
tributárias, incluindo recursos, tempo e funcionários envolvidos. É ineficiência pura. É preciso atacar o custo Brasil que somos obrigados a
carregar. O segundo ponto é discutir como facilitar o acesso das empresas
brasileiras a componentes competitivos no mercado. Se consigo importar peças a
um preço acessível, meu custo diminui e
eu exporto mais. Temos de discutir com o governo e as entidades qual é o
futuro. Não é uma discussão fácil. Todas
as empresas investiram porque acreditaram, talvez erradamente, no modelo antigo.
É necessário abrir o mercado. Penso no
exemplo da Embraer. Por que ela funciona? Ela não opera no Brasil? Ela
também não tem concorrência internacional? E consegue ser competitiva justamente porque pode importar, não
precisa se abastecer de fornecedores locais. Na minha visão, o conceito tem de
ser “importar mais para exportar mais”.
Mas com tempo de transição para as
indústrias se adaptarem.
Não
é uma estratégia arriscada?
Philipp Schiemer:
As empresas
se adaptam rapidamente. As grandes companhias, dentro da fábrica, são
competitivas. Com as crises que o país já teve, somos competitivos. Os
problemas começam fora da fábrica. Há
uma burocracia muito forte, os custos logísticos representam um grande
obstáculo, existem as regras de exigência de conteúdo local. Claro que
dentro das fábricas é possível melhorar. Mas esse é nosso trabalho do dia a
dia. As empresas brasileiras têm condições de competir, mas é preciso que
tenham melhores condições para trabalhar.
Os
representantes da indústria brasileira defendem o real desvalorizado para
ajudar na competitividade. Qual a avaliação do senhor?
Philipp Schiemer:
Hoje o
maior problema do câmbio é a sua volatilidade. A falta de previsibilidade afeta
os planos de qualquer empresa. O câmbio
pode ajudar nas exportações, mas o Brasil precisa resolver questões estruturais.
A Alemanha consegue exportar mesmo com o euro valorizado, porque os produtos
têm tecnologia de ponta e, ao mesmo tempo, custos competitivos, pois os fabricantes podem comprar componentes de
qualquer lugar do mundo.
O
novo governo entende esses desafios?
Philipp Schiemer:
Sou
otimista. Quando a gente conversa com pessoas em termos técnicos, a conversa é
mais fácil. Quando se põe a ideologia por trás, fica difícil. Temos de colocar
os problemas em cima da mesa e discutir como resolvê-los. Minha sensação agora
é que as pessoas que fazem parte do novo governo estão mais preocupadas com os
problemas do que com a ideologia. O
Brasil precisa decidir: queremos seguir o caminho da Venezuela ou da
modernidade? O caminho para a modernidade não é fácil, mas as chances de
que haja um crescimento sustentável depois são muito grandes, porque o
potencial no país é enorme. A situação
está tão ruim que, se não forem tomadas providências agora, as consequências
serão fatais. Isso é muito claro. A
indústria no Brasil está à beira da morte. Talvez nem todos tenham
entendido a gravidade da situação, mas a discussão está começando.
A
Mercedes ofereceu 100.000 reais a cada funcionário que aceitar desligar-se da
empresa voluntariamente. Por que esse valor elevado?
Philipp Schiemer:
Entendemos
que um acordo é feito entre duas partes e que ambas têm de ceder. Nós acertamos
com o sindicato dois pontos que, para nós, são muito importantes. Vamos reduzir
o quadro em cerca de 1.400 funcionários com esse programa de demissão
voluntária (PDV) e, no ano que vem, não teremos de conceder reajuste salarial.
(O programa teve 1.047 adesões, e a empresa
avisou que pretende cortar 370 trabalhadores para atingir a meta, mas o
sindicato tenta evitar as demissões.)
Em
contrapartida, oferecemos um valor maior a quem entrar no PDV e estabilidade
até 2017 a quem ficar. É o acordo dos
sonhos? Não. Mas é um acordo possível para as duas partes. Sempre digo que
o que pode ser acertado em um acordo é algo bom. E o que pode ser feito por
dinheiro é barato. Porque, se acaba em briga, sai mais caro.
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