E agora, José?
Moysés Pinto
Neto*
Não houve inversão abrupta da ordem política com a
queda de Dilma.
Houve chicana, ilegalidades, conspiração, canalhice.
Quem assumiu o governo já estava dentro dele, a
gestação
da queda de Dilma deu-se dentro do Planalto.
DILMA ROUSSEFF ex-presidente depõe no Senado Federal no curso do julgamento de seu mandato Segunda-feira, 29 de agosto de 2016 |
Não
pode ser outra a pergunta que a esquerda faz a si mesma neste momento. Trata-se
de um momento de derrota abissal que não
envolve apenas um governo que a maioria da esquerda sequer reconhecia como de
esquerda, mas na própria incapacidade de falarmos a nós mesmos e
organizarmos gestos contra o que virá. Agora
será um momento muito duro de ajuste de contas. Ou não? Tudo depende.
Dilma levou até o fim a tese
de que o impeachment sem crime de responsabilidade seria um golpe de estado, mais especificamente golpe
parlamentar. Ao fazer esse gesto, está
sacrificando a possibilidade de acordos na Realpolitik e falando para o lado
"movimento" do PT, sua base política, os intelectuais que
denunciam a violação da Constituição, reforçando o clima que o poder foi
saqueado em uma manobra da direita. Seu
ato pode ter múltiplas leituras, desde o resguardo da sua biografia no
último instante, o enfrentamento legalista contra o golpismo, o "registro
para a História" e outras menos nobres, como a reorganização do PT a
partir da última ponta de identificação com a esquerda que restou — aproveitando a tosquice rudimentar da direita
nacional (e latino-americana em geral), sempre disposta a sacrificar seu
aparente respeito à legalidade em nome da destruição do adversário político — , construindo
o clima para que Lula figure como candidato competitivo em 2018. A esquerda
ex-governista e todo "apoio crítico" (ou linha
auxiliar) aos governos do PT reafirmará que se tratava de um
governo de esquerda contrastando-o aos crápulas que cinicamente discursavam na
Câmara e no Senado, vociferando impropérios e mediocridade em nome dos valores
tradicionais e todo esse entulho reacionário que estava na defensiva nos
últimos dez anos, mas agora volta com força. E há no mínimo um grande argumento — que convenceu não apenas a eles, mas também uma parte da oposição de esquerda — em torno da violação da soberania popular. A deposição de uma Presidenta
legitimamente eleita, com a força do voto do povo, é um fato que quebra a
normalidade democrática que, a muito custo e tropeços, vinha se configurando no
Brasil. Aliás, esse campo legalista joga contra a direita nacional a
depreciação da imagem positiva que o Brasil vinha conquistando na última
década. Ao contrário do que os pittbulls da direita vociferam, desenhando o
Brasil como estado "bolivariano", havia um amplíssimo consenso
internacional a tornar o Brasil um projeto de potência mundial entre os BRICS
exatamente porque, ao contrário dos outros membros do consórcio, teria como
característica um Estado de Direito bem consolidado e uma democracia com regras
respeitadas. Esse respeito reverencial à forma característico da democracia
liberal foi colocado em risco em nome de exigências imediatas de deposição do
PT, com o retorno de velhas oligarquias
fisiológicas para a cabeça do poder (para a cabeça, porque todo o resto do
corpo já tinham).
LULA REUNIDO COM TODA A CÚPULA DO PMDB na tentativa de restabelecer a aliança deste partido com o governo de Dilma Rousseff Estes são os mesmíssimos acusados, agora, de "golpistas" |
Do
outro lado, existe uma esquerda que bate o pé contra a narrativa do golpe (em
instantes, falarei sobre o tema "narrativa"). Ela precisa se
contrapor à tese por razões políticas. Ao colocar 2013 como o evento que rompeu
a ordem instaurada na Nova República, discorda da imagem de equilíbrio
institucional que caracterizaria o período. O Estado de Direito não seria mais que uma miragem diante de um sistema
político decrépito e capturado por forças patrimonialistas. O PT seria
simplesmente o "síndico" do condomínio peemedebista. A decomposição
do sistema teria começado muito antes, e nada menos que o "Fora
Todos" — como diz o PSTU, isoladamente, na
institucionalidade — seria aceitável. Para ela, o processo
histórico
iniciado em 2013 não teria se encerrado, ao contrário. Estaríamos num momento de transição no qual figuras
monstruosas, como formas decadentes de um tempo que encerrou e teima em
sobreviver, predominam. Michel Temer e
Eduardo Cunha, ambos recentes aliados do PT, seriam os emblemas desse momento.
Os defensores da tese do
golpe
argumentam, em contraponto, que não se teria derrubado um governo se não fosse
popular. A queda do PT representa uma mudança qualitativa que não teria sido
obtida nas urnas. Afirmam que os "isentões" serão julgados pelo
Tribunal da História. Em contraponto, a oposição de esquerda não aceita ser
rotulada dessa maneira. Que a bipolarização, longe de ser uma exigência
inevitável dos nossos tempos, é a causa dos nossos principais problemas. Que a bipolarização se torna artificial quando,
a partir de 2013, surge um campo de novas forças políticas. 2014 teria sido o primeiro grande
"achatamento" ou, como diz Bruno Cava, "operação
ortopédica" com a redução da luta
política a dois campos, petralhas
e coxinhas, sem observar uma imensa fatia da população que não se sentia
representada por nenhum dos dois. E, contudo, só haveriam dois. O apoio à
Copa — sustentado na proposital confusão entre a
crítica "vira-lata" e aqueles que reivindicavam direitos — seguido do episódio eleitoral de 2014 teriam
sido os momentos inaugurais desse encurtamento. Era necessário reduzir tudo que não era o PT (salvo o PSOL, eleitoralmente inofensivo) à direita. Quem apoiou Marina Silva, uma candidata que se
apresentou com perfil de centro-esquerda, manejando um programa bem parecido
com o primeiro mandato de Lula, sentiu na pele a dor do policiamento. As
críticas seriam válidas desde que, ao fim e ao cabo, tudo voltasse à
reafirmação do PT. Qualquer raciocínio que escapasse disso seria tachado como
direita. O uso de termos morais
— "oportunista", "traidor", "coxinha" — caracterizou esse momento. Sem comparar a proporção, sentiu-se em doses suaves
o que o stalinismo era capaz de promover no âmbito da linguagem. Assim, o setor
da esquerda que recusa o golpe recusa, também, a chantagem. Recusa ceder. Já
foi devidamente isolado, boicotado, etiquetado. Mesmo uma jornalista fora de
série como Eliane Brum —
com algumas das mais
importantes colunas e matérias do Brasil recente, sempre ao lado dos vulneráveis — não passa ilesa da ironia.
"Acima dos Muros",
referindo-se a uma coluna em que tive a honra de participar, como se esse
"acima" significasse um não-ter-posição, e não
simplesmente o reconhecimento de que a polarização se passaria em um nível
diferente daquele que está proposto pelos órgãos de propaganda política da era
das redes sociais. A posição está em
outro lugar, fora da caixa bipolar. Na verdade, contra os muros, sempre
lembrando o que o muro significou no imaginário político do século XX.
Mas
o debate não se encerra. Não foi o PT e
todos os seus erros, mas o voto popular que foi desrespeitado. Aqui, então,
está o núcleo do duelo de narrativas. Antes de explicá-lo, o aparte
prometido sobre "narrativas": não há, infelizmente, um ponto de vista
que permita acessar aos fatos nus. Toda proposição remeterá a um contexto e
esse contexto nunca se esgota, nunca é saturável. O contexto pode ser
demarcado, e não é outra coisa que nós fazemos quando fazemos teoria, mas
jamais esgotado na sua forma absoluta. A incompreensível regressão a um
hegelianismo vulgar de parte da esquerda, com sua noção teleológica da História
e — pior
— um Tribunal (versão secularizada do
Apocalipse), simplesmente não se sustenta. O
que se estabelece é, como sempre, uma guerra de versões. Essa guerra não é
simplesmente um relativismo selvagem, em que cada um diz o que quer. Nem as
versões são simplesmente atos de poder puro e simples. Toda narrativa sustenta-se numa rede mais ampla (a conjuntura
política, o capitalismo, a geopolítica, o século XXI etc. etc.) na qual irá se apoiar. O que não tiver
consistência, irá se fragilizar mais facilmente. Mas não existe ponto fora das narrativas. A história já é narração.
Narrar a história tal-como-ela-é, como mostra Lévi-Strauss em "Pensamento Selvagem", significaria
ocupar todos os espaços do tempo presente a fim de nada perder. Não há história sem filtro — o que não significa, de forma
alguma, que a história seja simplesmente relativa ou questão de opinião. O que não existe é esse ente
suprassensível, herdeiro de uma certa teologia, chamado História.
Volto,
pois, ao duelo: os ex-governistas e a
sua linha auxiliar querem considerar que a oposição de esquerda esteve errada
esse tempo todo. Que era necessário apoiar, apesar de tudo, o PT, pois a
face atual do sistema político mostra que estávamos avançando. As teses dos
blogueiros progressistas (o "desejo de golpe") estariam no final das
contas certas: haveria um golpismo em gestação o tempo todo, um conluio na
"Casa Grande" para expulsar o PT do consórcio. A oposição de esquerda foi a "esquerda que a direita gosta",
isto é, aquela que sacrifica vitórias em nome de princípios, que vive em um
mundo paralelo e não percebe a mudança na vida das pessoas mais pobres. Por
isso, é importante afirmar que houve golpe, houve uma ruptura da ordem jurídica
com o intuito de destruir a parca proteção social conquistada nos anos
petistas. A narrativa é que estaríamos
vivendo um avanço conservador
— para alguns relacionado com
os movimentos de 2013, mas sobretudo vinculado ao ressentimento da classe média — combinado com uma ofensiva do mercado
financeiro para recuperar os prejuízos do período desenvolvimentista. Sintonizando
com o governo Jango golpeado em 64, tratar-se-ia
da velha disputa entre um nacionalismo trabalhista contra o patrimonialismo
"entreguista" das elites brasileiras. O mesmo movimento — o projeto "Brasil Grande" — abrangeria Getúlio, Juscelino, Jango,
depois Lula e Dilma. (Mais recentemente, Ernesto Geisel passou a fazer parte
desse rol…). Os legalistas (ou garantistas) não necessariamente subscrevem
isso, por isso daqui a pouco volto a eles.
MICHEL TEMER, DILMA ROUSSEFF e LUIS INÁCIO LULA DA SILVA durante cerimônia de posse em janeiro de 2015 Um vice-presidente insistentemente desejado para a chapa vitoriosa |
Ora,
essa narrativa a oposição de esquerda
não pode aceitar. E por isso boa parte dessa oposição não pode aceitar a
palavra "golpe". Se golpe
significa a inversão abrupta do regime, utilizar a palavra significaria que o
PT foi atacado pelos seus inimigos políticos e que a oposição de esquerda teria
sido ingênua e manipulada no período. Acontece que, do ponto de vista da oposição (chamarei de autonomistas
de agora em diante), não houve inversão
abrupta da ordem política. Houve chicana, ilegalidades, conspiração, canalhice.
Mas inversão não. O governo Jango foi golpeado porque propôs reformas de base e
seus inimigos trataram de destituí-lo. Quem
assumiu o governo agora, ao contrário, foi o PMDB, vários ministros
participaram dos governos petistas e, ao contrário da imagem dessas forças de
inversão, a queda de Dilma foi gestada desde dentro do
Planalto. Como já escrevi várias vezes, a estratégia simplesmente parou de funcionar (por isso a nomeei
"zumbi") e foi aprofundada até sua ruína. Apesar do protesto dos
desenvolvimentistas, o próprio governo
reconheceu a necessidade de ajuste fiscal (até na sua fala ao Senado Dilma
manteve a posição, ainda contra as ideias do seu partido e apoiadores). É como
se tivesse ocorrido aquilo que Deleuze e Guattari diziam ser impossível: o governo morreu
de contradição.
Mas
existe um ponto mais profundo nessa disputa, que é o próprio significado das
lutas da esquerda nos últimos anos. Se aceita a versão do golpe nos termos dos
ex-governistas e linha auxiliar, então as práticas autonomistas caem no erro
político, dado que teriam servido à direita. Para os autonomistas, no entanto,
tratava-se de disputar o projeto da esquerda. Sempre que se alega que 2013
teria sido um erro por possibilitar que a direita saísse as ruas, resta a
pergunta: que esquerda é essa que deseja
pessoas sem participação política, sem ocupar as ruas, sem demandar melhorias,
totalmente submissa a um projeto burocrático-governamental? Se os governos
de esquerda alegam justamente que não podem fazer as coisas porque não têm base
para tanto, não é o caso de aproveitar justamente o momento em que as pessoas
estão nas ruas para fazer? Que outra
atitude é demandada da esquerda, a não ser ocupar as ruas, pressionar os
governos e exigir mudanças?
Existe
aqui, então, um impasse: a palavra
golpe, quando carregada do sentido que o campo ex-governista dá, torna as lutas
políticas autonomistas estéreis. Mas, ao mesmo tempo, os autonomistas não
podem — ou não deveriam, a meu ver — negar que houve um fato significativo e muito importante, a violação do resultado
das urnas, da fagulha de soberania popular que a democracia representativa
garante.
Não é possível tomar isso como insignificante e precisamos de um nome para isso
(golpe, por exemplo?).
Será
possível pensar ao mesmo tempo continuidade e descontinuidade? Afinal, o fato estarrecedor é que, apesar de o impeachment ser uma nítida violação da
Constituição (não enquanto impeachment, é óbvio, mas por não haver
crime de responsabilidade de acordo com os parâmetros legais) e da soberania
popular, as periferias — suposta base
de apoio petista — não igualaram
os movimentos mais identificados com a classe média e elite que tomaram as ruas
em 2015 e 2016. Não houve luta de classes explícita. Portanto, é de se supor que essa
descontinuidade não está sendo sentida, que a derrota política do PT se deu de
forma irreversível. A descontinuidade
com o respeito ao veredito das urnas contrasta com a sensação de continuidade
institucional na população em geral. O Brasil profundo não se revoltou.
Isso me coloca a pensar em duas coisas: primeiro, na relação entre continuidade
e descontinuidade a partir do direito; segundo, no porquê a população consentiu com a queda de Dilma (apesar dos
movimentos de resistência que, contudo, nunca conseguiram igualar seus
oponentes).
É
aqui que gostaria de pensar no papel dos legalistas nesse processo. Eles
defendem a perspectiva de que seria necessário o respeito integral às
instituições e arrolam vícios atrás de vícios no procedimento como um todo,
inclusive no mérito. Têm produzido uma intensa militância contra o processo.
MANIFESTAÇÃO NA AVENIDA PAULISTA Domingo, 15 de março de 2015 |
Boa
parte do pensamento jurídico progressista (doravante, humanistas)
foi forjado no período pós-ditadura, mesmo período em que surgiu o PT. Por esse
campo, refiro-me a juristas identificados com a luta pelos direitos humanos e
com o garantismo (termo mais usado na esfera penal). Politicamente, a maioria identifica-se com uma posição social-democrata
e, no limite, do socialismo democrático. Criaram-se no espaço que a
hegemonia neoliberal reservou para a resistência ao capitalismo: o campo dos
direitos humanos (como mostram, por exemplo, Badiou, Agamben e Zizek). Assim, a ascensão da esquerda petista está muito
próxima desse campo humanista, vinculando o progresso político ao discurso
jurídico de efetivação dos direitos fundamentais. Não há uma identidade total
aqui, mas a confluência é fácil de perceber.
Acontece
que, do ponto de vista autonomista, os
humanistas padecem do vício de considerar que o estado de direito está posto,
trata-se apenas de aprofundá-lo. É fácil recuperar no espaço de 2010–2013
os debates que a permanência ou superação da ditadura geraram no âmbito da
própria esquerda. Naquele momento, os humanistas, a fim de defender as
conquistas sociais, recusam como "catastrofistas" ou até
"esquerdistas" as afirmações de que o estado de exceção é a regra. Em
compensação — não posso deixar de anotar
isso, desculpem os meus amigos
— em um gesto de grande hipocrisia passaram a considerar a exceção a partir do
julgamento do Mensalão em 2012. Desde então, o campo
humanista está empenhado em afirmar que o sistema penal funciona ao modo da exceção quando se
trata da corrupção petista. Haveria uma seletividade política entre as agências penais dirigida
especificamente contra os petistas.
Esse
ponto mostra bem porque a narrativa garantista mais confunde que ajuda a
entender o Brasil atual. Se transpormos o tema para a Lava Jato, fica clara a
inconsistência. Para os garantistas [PT
e aliados], a Lava Jato seria uma
manobra golpista, forjada a partir de conluio
"jurídico-oligárquico-midiático" e, nas versões mais ácidas, Moro um
agente infiltrado da CIA pronto a sequestrar o Pré-Sal. No entanto, é a
própria defesa da Presidenta que utiliza os áudios de Jucá para mostrar que o
que ocorre é exatamente o contrário: o impeachment foi tramado com a finalidade
de barrar a Lava-Jato, dado que Dilma estava permitindo seu andamento sem
entraves. Assim, algo não bate aqui:
ou a Lava-Jato é o principal instrumento do
golpe, ou é a motivação contra a qual se armou o golpe. Não é possível que
seja as duas coisas ao mesmo tempo. Sabemos que até para positivistas jurídicos
a análise do que está ocorrendo, do ponto de vista político criminal, é
equivocada porque promove a sutura na polarização político-partidária sem
mediações (expliquei aqui). O que
acontece é que a Lava-Jato é uma força imprevisível para os políticos (o
que não significa que seja perfeita nem igualitária) e que o sistema quer controlar, de todas as
formas possíveis, o que irá acontecer. Como a Lava-Jato não está
atrelada a nenhuma força política institucionalizada (na verdade, ela é
resultado de uma composição entre a classe média anticorrupção que ocupou as
ruas e uma camada jovem tecnocrática de agentes jurídicos identificados com o
punitivismo), essa análise deve estar errada.
Ademais,
os garantistas contestam uma série de manobras jurídicas que estariam erradas,
mas sabem que nenhum processo criminal no Brasil respeita suas posições na
plenitude. Eles sobrecarregam as exigências formais (de modo coerente com o que
costumam demandar nos seus textos, diga-se), contudo deixam de avisar o leitor
que a maneira como concebem o Estado de Direito não está sendo violada
ocasionalmente nos casos que envolvem o PT, mas sistematicamente enquanto modo
de funcionamento do sistema penal. Podem passar a falsa impressão, com isso, de
que há uma forte ruptura com um conjunto de garantias e direitos que são
respeitados, quando a rigor se trata de uma miragem em relação ao efetivo modo
de funcionamento do sistema penal. Do ponto de vista da observação do que está
acontecendo, a representação garantista, como dito, mais confunde que ajuda.
Por
incrível que pareça —
dada a dimensão do texto — dirijo-me então ao penúltimo ponto. Por que não houve revolta? Parece que aqui a política do medo utilizada
contra Temer, no sentido de que se farão várias reformas neoliberais, não está conseguindo afetar as pessoas.
A resposta para isso é: a esquerda
perdeu o centro. O ciclo desenvolvimentista não convenceu as pessoas como o
lulismo — a combinação entre política de austeridade e
programas sociais fortes
— havia convencido. Lula era capaz de traduzir para o senso
comum as posições mais alinhadas à esquerda; Dilma, não. Por isso, apesar
da grave ruptura com a ordem institucional, a população não se revolta. A crise econômica pesa forte e claro que o
apoio da mídia tradicional (isto é, Globo) a medidas de austeridade e todas as ideias neoliberais acaba promovendo
uma adesão. O liberalismo cresceu entre os jovens estudantes e empresários
em geral. Há, portanto, um segmento considerável da população que apoia a volta
a uma política ortodoxa que nesse momento está mais pesado que aqueles que a
contestam. Não adianta apenas dizer que
as urnas elegeram o desenvolvimentismo; o fato é que nem Dilma, a eleita,
conseguiu sustentar essa política.
Que projetos alternativos
nós temos para confrontar isso?
LULA É A ÚNICA "FICHA" DO PT PARA AS ELEIÇÕES DE 2018 Mas seria o caso de termos mais do mesmo? |
É
aqui que termino minha reflexão na aporia. Se é certo que precisamos de um
discurso de esquerda que nos aproxime do centro, também é certo que as ruas estão demandando, desde 2013,
transformações substanciais, não apenas mais tecnocracia. O modelo Clinton
de esquerda é o que está mais deteriorado politicamente. A proteção social do
trabalhador hoje, em tempos de aceleracionismo, é estrategicamente uma das
principais pautas. Poderia escrever como precisamos
repensar a sociedade do consumo, o crescimento extensivo e outras questões
que costumo abordar, mas fico ainda na análise de conjuntura e jogo de forças.
Estrategicamente, contra Temer, o discurso do golpe é potente. Aglutina,
deslegitima totalmente o adversário, coloca-o no seu devido lugar. Além disso,
respeita a soberania popular, algo que nem concepções que suspeitam da
democracia liberal deixam de considerar como um valor primordial (que deveria
ser aprofundado). Poderíamos usar o
discurso do golpe, reunificando o campo hoje destruído em torno do Fora Temer e
novas eleições? Poderíamos. Mas
existe algo que emperra o debate — e vai manter a esquerda separada nos próximos anos, creio eu. É a volta de Lula. O PT usará — até com legitimidade, admito — o discurso do
golpe para cacifar na esquerda a candidatura de Lula. Mas os autonomistas não
aceitarão mais do mesmo, mais do modelo que já está totalmente esgotado. Ainda antes do impeachment, já advertia que Lula era a figura que paralisava o
Brasil na bipolarização. Prevejo que essa fratura permanecerá até 2018.
*
Moysés Pinto Neto é graduado em Ciências Jurídicas pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
- UFRGS, mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e doutor em Filosofia
nessa mesma instituição. Leciona no curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil – Ulbra, em Canoas (RS).
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