Cautela no combate à corrupção
Roberto Romano
Filósofo
e Professor de Ética e Filosofia na Unicamp
Alguns reparos ao projeto de combate à corrupção – PL 4850/16
ROBERTO ROMANO |
Em
anos de vida acadêmica ou embates públicos, apoio a busca de atenuar a corrupção brasileira. Digo atenuar
porque nenhuma sociedade pode reduzir a zero tal fenômeno. Sempre estive ao
lado do Ministério Público, sem, no entanto, esquecer os que exercem a defesa.
Neste mesmo espaço, o leitor encontra textos meus em favor dos polos
antagônicos nos processos judiciais. Na PEC 37, com a qual muitos políticos
tentaram impedir o mister dos promotores, foi inequívoca a minha posição. Mas
lavrei meu protesto quando atos ilegítimos intimidaram advogados (sobre a
defesa, ver O Estado de S. Paulo,
1/9/2012).
Lema
importante, para quem deseja lutar pelos direitos humanos, temos em
Aristóteles: “Amicus Plato, sed magis
amica veritas”. Bajular é coisa que
impede a amizade verdadeira, tal ensino ético reside em toda filosofia
digna do nome.
Na Comissão Especial da Câmara dos Deputados
para análise do Projeto de Lei 4.850/16,
que reúne o labor de alguns integrantes do Ministério Público, falei a convite
de parlamentares de partidos diversos como Rubens Bueno, Antonio Carlos M.
Thame, Carlos Marun, Paulo Teixeira, Onyx Lorenzoni e Joaquim Passarinho – os
dois últimos relator e presidente da comissão. O tempo de fala foi dividido com
Augusto Botelho, criminalista.
O PL 4.850/16 busca atenuar
a corrupção.
Mas nele resistem traços sombrios da vida nacional. Apresentei objeções éticas a três de seus elementos.
1º)
O primeiro destina
a delatores 5% do produto “arrecadado” nos processos. Não é preciso
ser I. Kant ou J-J. Rousseau para perceber que o prêmio à delação acentua o número dos injustamente perseguidos.
Na Grécia antiga temos algo
evidenciado em textos processuais salvos pela pesquisa histórica. Eles mostram
a catástrofe trazida pelos sicofantas,
delatores pagos para vigiar supostos ou
efetivos corruptos. Em As Vespas,
Aristófanes mostra o quanto é deletério o indivíduo armar processos para
enriquecer seu bolso. Numa sociedade
violenta como a nossa, se o ato de acusar é recompensado financeiramente, a
epidemia da corrupção se desdobra na pandemia dos sicofantas.
Na
Grécia democrática o recurso aos
delatores se dá sobretudo nos séculos 4.º e 5. º aC. Suas técnicas mostram similaridade com o sistema da chantagem (black mail) nos sistemas políticos
modernos. “Sicofanta era o homem que fazia processos sem justificação, seja
porque tinha esperança de pegar um réu inocente e dele obter a paga devida a um
promotor bem-sucedido, ou porque ele tinha a esperança de chantagear o réu ao
induzi-lo a pagar propina para pôr fim ao processo” (MacDowell, Douglas M. em The Law in Classical Athens). Como
vencer a corrupção? Receita simplória: caçar corruptos e aliciadores de
benesses e, se necessário, inventar culpados. O instrumento para tal fim era o sicofanta.
Essa palavra, desde tempos
remotos, designa quem acusa falsamente (Matthew R. Christ, The Litigious Athenian). Lísias, político da época, explica: a tarefa do sicofanta “é acusar, mesmo os
que nada fizeram de errado, porque destes últimos eles arrancam mais lucro”.
Sicofantas ajudam a combater a corrupção, mas eles próprios são corruptos,
entre outras coisas, pelo uso da chantagem.
2º)
O segundo ponto do projeto é o “teste de idoneidade”, amplamente discutido na
literatura especializada. Ali o
indivíduo fica solitário diante de inquisidores secretos, é tentado de mil
modos sem defesa. Imaginemos um pouco mais de autoritarismo no Estado
brasileiro. A hipótese não é absurda, após as ditaduras do século 20. Se os governantes brasileiros não respondem
por seus atos (quase inexiste accountability
no Brasil = responsabilização do
político), com tal instrumento será
mais fácil perseguir adversários. O poder político, por sua dinâmica, cai
de mão em mão por ordem da Fortuna. Pôr
ao dispor de autoritários uma técnica como o “teste de idoneidade” é, no
mínimo, imprudência.
Com
o macarthismo
surgem nos Estados Unidos da América (EUA) os “testes de lealdade” e seus
graves prejuízos éticos. Felizmente, os referidos testes foram atenuados. Uma
técnica ética e moral, estabelecida por Kant para testar a validez de certa
máxima, é perguntar se ela pode ser universalizada, omnia et singula. Caso contrário, não é moral. O teste de
integridade pode ser universalizado para a cidadania e todos os Poderes? Por
exemplo, na Justiça? A resposta é negativa. Nele o indivíduo estará solitário diante de um poder invisível que só
responde a posteriori, mas silencia o nome e as condições do investigado.
Estaríamos no domínio de O Processo,
escrito por um autor que denunciou o abuso do segredo.
Clique sobre a imagem para ampliá-la Esta é uma síntese das Dez Medidas contra a Corrupção apresentadas pelo Ministério Público e, aqui neste artigo, analisadas pelo filósofo Roberto Romano |
3º) O
terceiro ponto defende a boa-fé dos policiais ou promotores. Mostrei na
comissão quanto é frágil tamanha licença.
Não sou voz solitária na crítica. Outros formadores de opinião têm dúvidas
sobre o quesito (O Estado de S. Paulo –
Editorial, Quando só a boa-fé não basta,
19/8). O termo “boa-fé” não é unívoco, mas noção vaga. Não há consenso “sobre a
exata natureza legal da boa-fé. Esta imprecisão terminológica afeta
inevitavelmente a função preenchida pela boa-fé no direito contemporâneo”. E,
no entanto, “parece que um bom número de
sistemas considera que a boa-fé se aplica às leis que tratam das obrigações em
geral, e não apenas às leis do contrato”. (“Bonne Foi” en Principes Contractuels Communs, projet de Cadre Commun
de Référence, v. 7, cap. 5. Association Henri Capitant des Amis de la
Culture Juridique Française, Société de Législation Comparée, v. 7).
“O poder corrompe. O
absoluto corrompe absolutamente”. O enunciado de lorde Acton serve como clichê. Se o contextualizamos, ele ajuda a
refletir sobre a crise atual de Estados e nações. Em carta ao bispo Creighton,
Acton discute a responsabilidade de todos os poderes, do religioso ao político.
Creighton queria evitar a corrupção, atitude comum em coletivos prejudicados
por malfeitores públicos. Leis seriam ideadas para prevenir costumes imorais. “Eu não me preocupo”, replica Acton, “em evitar a corrupção, mas em saber como
ela surge”. É o que falta no PL 4.850/16.
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