Reforma do Ensino Médio em debate
OUVINDO OS
ESTUDANTES
Alunos questionam “falsa liberdade” em reforma
do ensino médio
Leandro
Machado
Alguns gostam da possibilidade de escolher disciplinas,
outros criticam a ausência de educação física e artes
entre as
disciplinas obrigatórias; outros, ainda, veem uma
reforma
muito focada na carreira profissional, esquecendo-se
que
a educação deve formar a pessoa como um todo.
Sentada
no jardim do colégio, a estudante Anna
Romão, 16, diz: "Odeio educação física. Não gosto de fazer
exercício". Do lado, a amiga pensa diferente. "Quero fazer faculdade
e ter uma academia", fala Letícia
Barbosa, 17.
Anna
pondera: "Odeio, mas é a única atividade física que pratico. Muita gente
da escola faz isso". Anna gosta mais de artes: quer ser jornalista, e,
quem sabe, também atriz – faz aula de teatro.
As
duas estudam na escola Alexandre Von
Humboldt, na Lapa (zona oeste de São Paulo), um dos 532 colégios estaduais com ensino integral no Estado e que
tem aulas eletivas, como teatro e artes plásticas. No total, a rede estadual tem 5.100 unidades.
No
banco ao lado, outras duas amigas, Amanda
Barbosa, 16, e Amanda Albuquerque,
17, concordam: nem todo mundo gosta, nem todos querem fazer algum esporte entre
aulas de matemática ou português, mas a tal educação física é importante.
O
debate chegou aos pátios e salas de aula de escolas privadas e públicas assim
que o governo federal lançou o novo plano de reforma do ensino médio, nesta
quinta (22 de setembro).
Pela proposta original, as
disciplinas de educação física, artes, filosofia e sociologia
passariam a não ser mais obrigatórias. Em meio à repercussão negativa, a gestão Michel
Temer (PMDB) voltou atrás nesta sexta (23 de setembro) e deu sobrevida às
matérias até o fim das discussões sobre a nova base curricular de ensino.
Enviado
ao Congresso como medida provisória, o projeto de reforma visa flexibilizar
essa etapa da educação, dando alternativas
para o aluno se especializar em cinco áreas:
a) linguagens,
b)
matemática,
c)
ciências humanas,
d)
ciências da natureza e
e) formação
profissionalizante.
“ROBOTIZAR”
No
jardim do colégio estadual, as quatro alunas discordam do plano – que
conheceram pela internet. "Tirar seria péssimo. Você pode não gostar de
uma matéria, mas é importante conhecer as coisas que ela trata, até para saber
que aquilo existe", afirma Amanda
Albuquerque, que sonha em ser médica.
"A
filosofia é uma disciplina que abre
sua cabeça para o mundo, que faz você se questionar. Não tem como não
ter", diz Amanda Barbosa, que
quer ser psiquiatra.
"Querem nos robotizar,
dizendo 'estude isso e seja um bom profissional'", diz Anna.
As alunas concordam que os
estudantes devem ter mais liberdade, com aulas eletivas.
“QUADRADO
DA SALA”
Se
pudesse escolher, Lívia Menin, 16, do
colégio particular Oswald de Andrade
(também na Lapa), ficaria com a educação física e com arte – "sempre",
afirma.
"São justamente as matérias que te tiram
daquele quadrado da sala de aula, com professor na frente falando, e
prova", diz ela, que está no segundo ano do ensino médio.
Lívia quer ser
"teacher" (professora), como ela costuma dizer. Influência dos seus
professores preferidos.
Seu
colega de turma, Alex Delouya, 16, gosta da ideia de ter mais autonomia na
escolha do que estudar. "Acho interessante [a proposta]", diz.
Mas
pondera: "com nossa idade, não sabemos o exatamente o que queremos fazer.
Por isso, é bom ter uma panorama de cada
coisa", argumenta o estudante. Alex quer ser professor, mas também
pensa em cursar cinema.
Na
quinta, após o anúncio do governo Temer, os dois alunos do Oswald Andrade
decidiram se reunir para discutir o projeto com representantes do grêmio
estudantil.
Na
escola, os estudantes têm opções de caminhos para seguir dentro das matérias
obrigatórias. Em educação física, por exemplo, podem optar por cursar aulas
voltadas a esportes mais tradicionais (futebol, vôlei, basquete) ou fazer
oficinas de capoeira e dança. Porém, eles devem cursar as duas vertentes
durante o ensino médio.
“FALSA
LIBERDADE”
No Colégio Equipe, tradicional escola particular em Higienópolis
(região central), a estudante do terceiro ano Laura Segurado, 17, diz ser totalmente contra o novo plano.
"A
proposta parece sedutora, porque dá a entender que os alunos terão mais
autonomia de escolha. Porém, é uma
escolha dentro de um universo que eles [governo] propõem. A intenção é fazer com que o estudante cada
vez mais cedo se prepare para a vida profissional", afirma.
"Educação não é só isso, é uma falsa
liberdade. Por que não podemos estudar cultura da América Latina, discutir
feminismo, propostas políticas? Esse
plano só pensa o sujeito como um profissional, e não como um ser político que
se questiona sobre a sociedade."
Laura
faz parte do movimento de secundaristas, que no último ano ocupou quase uma centena
de escolas estaduais em protesto contra o fechamento de unidades pelo governo
Geraldo Alckmin (PSDB). "Mais uma
vez, os estudantes não foram ouvidos, foi na canetada de novo", diz.
Laura pretende ser professora de
filosofia – a disciplina que mais gosta na escola.
REFORMAS NO ENSINO MÉDIO
Principais mudanças propostas pela medida provisória do
governo Temer
COMO É
HOJE
|
O QUE O
PLANO PROPÕE
|
VANTAGENS
|
ENTRAVES
|
Carga horária mínima é de 800 horas anuais (ensino
parcial)
|
Grade
será ampliada gradualmente para 1.400 horas anuais (ensino integral)
|
Há
evidências de que a carga expandida melhora o desempenho dos alunos
|
Modalidade
integral requer um bom projeto pedagógico e gastos maiores
|
Alunos cursam 13 disciplinas obrigatórias nos três
anos
|
Só parte da grade será igual para
todos; depois, aluno poderá se aprofundar entre cinco opções: linguagens,
matemática, ciências da natureza, humanas e ensino técnico
|
Flexibilizar a grade dá autonomia e
atrai os adolescentes
|
Oferta de habilitações pode ser
desigual entre escolas e redes
|
Ensino médio é dividido, em geral, em três anos
|
Escolas
poderão adotar sistema de créditos em algumas disciplinas
|
Medida
também dá mais liberdade ao estudante
|
Mudança
depende de uma organização complexa das redes
|
Professores têm que ser formados na área e passar
por concurso
|
Poderão ser contratados professores
sem concurso e apenas com notório saber
|
Ação ajuda a suprir demanda de
professores na ampliação do ensino técnico
|
Qualidade dos profissionais e do
ensino pode diminuir
|
Educação física e artes eram obrigatórias no
ensino infantil e em todo o básico
|
Disciplinas
deixam de ser obrigatórias no
ensino
médio ( * )
|
Mudança
diminui o número de disciplinas obrigatórias
|
Prejudica
a formação cultural e a saúde dos estudantes
|
Governo federal tinha programas menores de
incentivo ao ensino integral
|
União dará aporte financeiro por
quatro anos a escola que introduzir ensino integral
|
Investimento incentiva instituições a
aderirem à modalidade
|
Governo diz que valor respeitará
disponibilidade orçamentária, mas vive momento de cortes
|
(*) –
Parece que o governo federal já esteja revendo essa medida e poderá deixar
essas disciplinas como obrigatórias. Mas é uma fase de discussão ainda.
Fonte: Folha de S. Paulo – Educação – Sábado, 24 de setembro de
2016 – 02h00 [Horário de Brasília – DF] – Internet: clique aqui.
OUVINDO OS
ESPECIALISTAS
Desafio de plano de ensino médio é ter
professor qualificado, diz especialista
Paulo Saldaña
É importante os Estados da Federação terem autonomia
para a
implementação dessa reforma, mas o sucesso dependerá de
atenção à formação de professores
Para
Ricardo Henriques, 55,
superintendente do Instituto Unibanco,
a flexibilização que o novo modelo de
ensino médio, apresentado nesta quinta (22 de setembro), vai abrir é um ponto de partida para que
haja clareza para enfrentar outros problemas da educação brasileira.
Em
entrevista à Folha de S. Paulo,
Henriques ressalta a importância de que
os Estados tenham autonomia para implementação. Mas, para ele, o processo
não será "trivial" e o sucesso
dependerá de atenção na formação de professores.
Qual
o papel da Base Nacional Comum nesse processo?
Ricardo
Henriques: Sem
a base, a arquitetura não funciona. Tem que estar tudo muito claro [as competências esperadas]. Mas agora aumenta o foco no ofício do professor.
Associar conteúdo com boas práticas de ensino passa a ser mais fundamental,
porque sai da ideia do conhecimento genérico.
Se
os alunos têm dificuldades em matemática, quem vai escolher se aprofundar na
disciplina? Essa abertura não pode intensificar o problema?
Ricardo
Henriques: Isso
tem que ser construído ao longo do tempo e vai bater nos professores. O
trabalho pedagógico na sala, os coordenadores, vão ter que se posicionar acerca
do valor dos conteúdos. A matemática tem
que sair da figura de hoje, de letrinhas, números e equações, e caminhar para o
entendimento do que ela é e significa.
Mas
isso já não deveria ocorrer hoje?
Ricardo
Henriques: Não
acontece porque hoje se aprende um
pouquinho de um montão de coisa. O novo modelo vai ajudar isso. É muito mais importante dominar alguns
conhecimentos básicos muito bem e depois se aprofundar, ao invés de ter uma
camadinha superficial sobre tudo. Mas o desafio recai também sobre a
implementação. Como mobilizar esse mundo possível para motivar os próprios professores?
Há
críticas de que a flexibilização não vai resolver o ensino médio com a
manutenção de problemas estruturais, como infraestrutura das escolas, lotação
de salas. Como ela se relaciona com esse contexto?
Ricardo
Henriques: É
obvio que o desafio é a harmonia em todas as organizações. A ideia de querer
resolver tudo antes não faz sentido, mas resolver
o problema de identidade da etapa é pré-condição para outras mudanças.
Certamente, na medida em que isso começa a ser implementado, abre para que
novos desafios sejam enfrentados de forma clara.
As
escolas particulares também deverão seguir a nova norma. O que esperar?
Ricardo
Henriques: Acredito
que não haverá tendência de aumentar o abismo, ao contrário. A tendência é reduzir as desigualdades
aumentando a capacidade de permanência de conjunto maior de jovens.
RAIO-X
Nome:
Ricardo Henriques
Idade:
55 anos
Carreira:
Economista, é superintendente do Instituto Unibanco. Já comandou a secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC e foi secretário
executivo do Ministério do Desenvolvimento Social.
Fonte: Folha de S. Paulo – Educação – Sexta-feira, 23 de
setembro de 2016 – 14h45 [Horário de Brasília – DF] – Internet: clique aqui.
Reforma não resolve problemas que desembocam
no ensino médio
Sabine
Righetti
Se o aluno carregar déficits de anos anteriores – o que
tem acontecido –,
não haverá disciplina opcional que o segure na escola.
Ele vai desistir.
SABINE RIGHETTI |
Uma
das principais bandeiras do governo Michel
Temer (PMDB), a reforma do ensino médio pode melhorar um pouco a situação
de quem está na última etapa da educação básica. Não resolve, porém, os déficits educacionais que despontam no ensino
médio.
A
proposta visa:
a) ampliar a carga horária e
b) flexibilizar o currículo, criando uma
série de disciplinas optativas.
c) Também
substitui as atuais 13 disciplinas
rígidas por quatro grandes áreas do conhecimento e mais ensino técnico.
É uma aproximação do Enem
(Exame Nacional do Exame Médio) – que, sob Temer, volta a ser coordenado por Maria Inês Fini, criadora da prova no
governo de Fernando Henrique Cardoso.
Flexibilizar a grade e ter
disciplinas optativas dá autonomia aos alunos e funciona bem em países
desenvolvidos,
como nos Estados Unidos.
Pode
ser uma forma de segurar na escola quem conseguiu passar bem pelo chamado ensino fundamental 2 – aquela fase da
escola em que os estudantes (pré-adolescentes) começam a ter um monte de
docentes e de disciplinas. Não resolve,
no entanto, o problema de quem chega ao ensino médio com dificuldades.
Se o aluno carregar déficits
de anos anteriores – o que tem acontecido –, não haverá disciplina opcional que
o segure na escola. Ele vai desistir.
É especialmente no fundamental 2 que o aluno começa a derrapar nas notas. O Ideb 2015 (Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica), principal referência de qualidade da
educação, mostra que as notas começam
bem nos primeiros anos escolares, mas despencam a cada nova série.
No fundamental 1, houve um crescimento de
5,2 para 5,5 entre 2013 e 2015 – alcançando a meta do Ideb de 2017.
Já
no fundamental 2, apesar do avanço
de 4,2 para 4,5, a nota segue fora da
meta de 4,7 do ano passado – e mais distante ainda daquela de 2017 (5).
Mais:
no Brasil, o aluno corre o risco de
escolher apenas as disciplinas com as quais tem um pouco de afinidade e pode
deixar de lado aquelas em que ele tem dificuldade. Com isso, pode terminar a escola com uma defasagem
gigantesca – e sem condições de competir, com igualdade, por vaga no ensino
superior.
Ser
"protagonista do seu percurso", como prega o ministro Mendonça Filho
ao falar de escolha das disciplinas, é uma ideia tentadora. Vale lembrar, no
entanto, que adolescentes ainda não têm
condições psicológicas nem fisiológicas para decidir sozinhos.
A
parte cerebral responsável pelo planejamento de longo prazo, por exemplo, só
amadurece por volta dos 24 anos. A
escolha de disciplinas e o planejamento de estudos, portanto, devem ser feitos
com orientação e mentoria. Isso vai acontecer de
maneira efetiva ou os alunos ficarão soltos à própria sorte?
A
possibilidade de abrir mão de educação
física da grade também pode ter resultado desastroso. Há estudos em várias
áreas do conhecimento que mostram que os
esportes, além de melhorar a autoestima, essencial na escola, aprimora a
capacidade de concentração e memorização.
Alguns especialistas chegam
a recomendar redução de horas de estudos e aumento de horas de esportes – prática bastante adotada
na Finlândia, um dos países-modelo em educação no mundo, inclusive durante os
rigorosos invernos daquele país.
Alguém, aliás, consultou os
estudantes sobre isso?
Hoje,
o ensino médio encontra meninos e meninas desanimados e com dificuldades nas
aulas, que vão ficando mais complexas. É um convite para a evasão escolar. Na prática, metade de quem começa a estudar
no Brasil não termina o ensino médio.
Se as disciplinas do ensino
médio continuarem separadas da realidade do aluno, com professores exaustos, em aulas
antiquadas no formato giz e lousa – e se a opção de ensino integral apenas
ampliar a quantidade de horas dessas disciplinas conservadoras –, o estudante
acabará largando a escola do mesmo jeito.
RAIO-X
Nome:
Sabine Righetti
Idade:
35 anos
Carreira:
é jornalista pela Unesp e especialista em jornalismo científico, mestre e
doutoranda em política científica pela Unicamp. Foi repórter por cinco anos na Folha de S. Paulo, escrevendo sobre
ciência e educação. Hoje, mantém o blog Abecedário,
colabora com reportagens para o jornal e organiza o RUF (Ranking Universitário Folha), uma proposta inédita de classificação
do ensino superior brasileiro. É pesquisadora e docente na pós-graduação do
Labjor/Unicamp e associada ao LEES (Laboratório de Estudos sobre Ensino
Superior) da Unicamp.
Fonte: Folha de S. Paulo – Educaçã0 – Quinta-feira, 22 de
setembro de 2016 – 20h15 [Horário de Brasília – DF] – Internet: clique aqui.
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