Não esquecermos os nossos mortos!
Onde houver morte violenta, escreveremos
“aqui um morto”
Contardo
Calligaris
Psicanalista,
Psicólogo Clínico e Escritor
Das 50 cidades do mundo com maior taxa de homicídios
por 100 mil
habitantes, 21 são brasileiras
No
fim dos anos 1950 ou no começo dos 1960, eu atravessei a Espanha, de leste a
oeste, viajando de carro com meus pais. Íamos da Itália até a Andaluzia.
Naquele ano (que não sei
qual foi), a administração das rodovias espanholas fazia campanha contra as
mortes nas estradas. Os motoristas eram incitados à prudência por grandes cartazes que
assinalavam sobriamente: "Aquí un muerto", "Aquí
dos muertos" — o máximo que vi foi "Aquí cuatro muertos".
Era
só isso. Sem descrições das circunstâncias, o acidente, às vezes, parecia
inexplicável —por exemplo, no meio de uma linha reta quase deserta. Talvez
alguém tivesse dormido ao volante.
Quando passávamos por um
cartaz, meu pai diminuía mais ainda sua velocidade, que nunca era grande.
Lembrei-me
disso ouvindo um candidato à Prefeitura
de São Paulo propor o aumento da velocidade máxima nas marginais.
A
diminuição do limite de velocidade nas marginais resultou numa diminuição dos
acidentes e dos mortos. Certo, todos
achamos que somos tremendos motoristas e o verdadeiro perigo não é a
velocidade, mas a imperícia dos outros
(nunca a nossa); achamos isso, mas nos envergonhamos desse nosso
pensamento.
A
proposta serve para bajular e autorizar
nossa vontade infantil de meter o pé no acelerador — doa a quem doer.
Enfim,
para a próxima prefeitura, eu tenho uma proposta. Poderia se chamar "projeto memória" (talvez
possa ser bancado pelo setor privado). Sei que a segurança é tarefa do Estado e
da Federação, não da prefeitura, mas minha proposta não é bem uma medida de
segurança.
Tradução: "PARE A VIOLÊNCIA - NÃO CORRA" |
Assim
como os espanhóis fizeram nas suas estradas nos anos 1960 ou 1950, proponho que a gente decida não se esquecer.
Em cada lugar onde houve um assalto nos últimos 15 ou 20 anos, sugiro que um
cartaz assinale: "Aqui um
assalto", ou dois, ou três (será 30% do que aconteceu de fato, porque
a maioria das vítimas não registra B.O.).
Também,
em cada lugar onde houve morte violenta,
escreveremos "Aqui um morto", ou dois, ou três ou mais (as mortes
são sempre declaradas, e o registro será fiel). Poderíamos criar um código que dissesse se morreu um policial, um bandido ou um
cidadão, vítima ou passeante.
Segundo
um relatório de janeiro de 2016, das 50
cidades do mundo com maior taxa de homicídios por 100 mil habitantes, 21 são
brasileiras —isso excluindo os países em guerra aberta. [É um absurdo a violência praticada no Brasil!]
Considerado
o tamanho da população, São Paulo talvez seja a cidade brasileira menos
violenta. Mas, se a comparação for com o resto do mundo, a história é outra.
O essencial, para mim, é que
a lembrança dos mortos é sempre necessária para saber quem somos. Sinto-me em casa em
Veneza, mais do que em Milão, porque Veneza é uma cidade habitada por
espectros.
Não
digo assim apenas na esperança de amedrontar os turistas — não é preciso: as
ruas venezianas são abarrotadas por fantasmas do passado, numerosos demais para
que eu enxergue os turistas, por mais que eles circulem em hordas.
CONTARDO CALLIGARIS Psicanalista e Psicólogo italiano radicado no Brasil |
Poderíamos chegar a um
resultado análogo, começando pelos nossos mortos da guerra urbana. Talvez os turistas se
interessem, aliás: já existem visitas guiadas aos monumentos da cidade, poderia
haver visitas guiadas aos lugares dos assaltos mais frequentes — quem sabe com
encenações, para estrangeiros verem como é.
Você perguntará: por que
tornar a violência urbana mais presente, mais inesquecível? Para a gente ficar mais
esperto, deixar o computador em casa e esconder celular e relógio em certas
ruas? Não é só isso.
Então
para o quê? O espetáculo constante das
feridas da violência no nosso tecido social talvez nos ajude a encarar (e sarar?)
nossa dupla herança maldita:
* a
de ter nascido como colônia de exploração e
* de ter explorado corpos
escravos por séculos.
Com
a consequência, que é quase norma
cultural, de arrancar do outro qualquer coisa que desejemos e subjugá-lo até à
morte.
Seu
W., funcionário meu, reúne orçamentos para estofar uma poltrona; um estofador
lhe diz: se você me escolher, pode aumentar em 20%, que fica com você. O mesmo estofador se indigna com a
corrupção de governos petistas e empresários. Ele não se dá conta de que ele
pratica o mesmo jogo da propina.
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