O que é preciso para mudar o Brasil?
Desmontar de novo:
que tipo de ruptura o Brasil enfrenta depois do
impeachment de Dilma Rousseff?
José de Souza
Martins*
Não seria com os vícios do sistema político, que
disfarça velhos hábitos com novas roupagens, afirma o sociólogo José de Souza
Martins. “Não somos criativos em política. Fazemos de conta que o velho é novo,
mas acabamos sempre nos repetindo”, analisa o professor emérito da USP, e
aponta o que considera o maior desafio deste momento: “É preciso saber quem
extrairá do legado dessa ruptura a revelação das possibilidades do Brasil. Essa
questão abre um novo capítulo da história política brasileira”
O
passado que nos governa desde sempre continuará governando o nosso presente e o
nosso futuro, não obstante a suposta ruptura representada pelo impedimento e
perda do mandato da presidente da República. Não nos iludamos. Não foi uma
ruptura inovadora porque não foi uma ruptura de superação. Boa parte
dos que votaram pela cassação já era o poder que governava a presidente. E o PT em nenhum momento de seu longo
mandato deixou de ser um partido de oposição aos outros partidos. Governou para
se opor; deixa de governar para continuar se opondo. Será, pois, laboriosa
a efetivação da ruptura e a superação das amarras que nos travam na inovação
política e na definição de um rumo político para o País.
Essa
é uma característica historicamente constitutiva da sociedade brasileira. O PT governou o País com práticas políticas
da República Velha, mesmo que em nome de valores e princípios da esquerda
pós-moderna. Ao achar-se e crer-se no poder, não demonstrou ter a menor
consciência de que, desde 1º de janeiro de 2003, quando Lula tomou posse, o
eleito e empossado, de fato, fora outro partido. Este é um sistema político em que os cordéis do mando são manipulados
por quem, aparentemente, no poder não está. É o poder invisível que nos
governa.
Como
em A Revolução dos Bichos, de George Orwell, já não sabemos quem é bicho e quem é gente nem sabemos quem, de fato,
recebeu o mandato de governar. E assim continuará sendo. Não há nenhum
indício, nenhum sinal, nenhuma evidência do que nos espera, a não ser a teimosa
persistência do que temos sido para regular o que queremos ser. Quando os
positivistas que criaram a República em 1889 colocaram seu lema na bandeira
nacional, “Ordem e Progresso”, acertaram em cheio em sua compreensão do Brasil.
Definiram o mote ideológico que regularia toda nossa história política: “Progresso”, sim, mas no marco da “Ordem”,
o novo e a inovação social e política nos limites do que persiste e permanece.
Lembrando Lewis Carrol, o criador de
Alice no País das Maravilhas, temos que caminhar muito mais depressa para
ficarmos no mesmo lugar. Vimos isso no mandato do PT e continuaremos a isso
ver no novo governo e naqueles que o sucederão.
Não somos criativos em
política nem somos inovadores. Apesar das polarizações ideológicas, acabamos na
prudência do repetitivo. Teremos que fazer um grande esforço
educacional para legarmos às novas gerações a superação dessa limitação. Nosso
lá adiante está também, e sobretudo, lá atrás. Imitamos, copiamos, fingimos, fazemos de conta que o velho é novo e
assim vamos cumprindo nossa sina de Curupira, o ente mítico indígena que
ocupou o imaginário dos descobridores, dos mamelucos e mestiços que somos,
racial e culturalmente. O ente que tem os pés virados para trás e nos faz ainda
hoje imaginariamente duplos, como Diadorim, em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Assim como Diadorim é
mulher fazendo-se de homem, que só se desencanta na morte, o Curupira é do
Progresso sendo da Ordem, é de esquerda sendo de direita, seres que só se revelam na agonia do perecimento, até mesmo na de
um cenário de morte política como a destes dias cinzentos.
LULA E JOSÉ DE ALENCAR (À ESQUERDA) TOMAM POSSE EM JANEIRO DE 2003 Lula abraça e saúda o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso |
A
máxima inovação política que tivemos: Lula no poder
Mas...
seu partido sucumbiu a esse poder
Não
obstante, há uma certa possibilidade de ruptura e inovação política neste
momento da história do Brasil. Mas qual ruptura? Em nome de que e até de quem? Toda ruptura
indica um possível, um caminho, novas formas de organizar e administrar aquilo
que, por obsoleto, se desgastou e deixou de cumprir as funções sociais e
políticas de que a sociedade carece. Na verdade, a ruptura começou lá
atrás, não nesta semana. Quando Lula foi eleito presidente da República, sua
eleição indicou o máximo de inovação política que o Brasil poderia suportar num
quadro partidário pobre e de pouquíssimas alternativas de mudança. Mas, nos acordos e alianças, aquilo já era o
começo do fim e não o começo do começo. A notória decomposição do partido no poder ao longo dos anos foi indicando quanto
o PT estava sendo possuído pelo poder e por aquilo que
criara, sem saber que o fazia, o partido lentamente desfigurado,
reduzido a ritos de fingimento do que supunha ser e já não era. Na votação do
impedimento da presidente da República, o que houve foi a consumação da
ruptura, o rompimento do PT consigo
mesmo. Mas também a condenação do sistema partidário, dos defeitos da
representação política, da incapacidade
de encontrar saídas políticas de superação, de invenção do futuro próximo e
do distante.
Não
só qual ruptura, é a dúvida, mas também quem
tornará real o legado da ruptura possível e dele extrairá a revelação das
possibilidades do Brasil? Essa é a questão que abre o novo capítulo da
história política brasileira. Temos mais
perguntas que respostas. Qual é o Brasil desse legado? Na perspectiva deste
presente tumultuado, qual é o futuro de uma nação que não tem como se desfazer
do fardo de uma história social e política que a oprime, que a tolhe? O cenário sugere que esse Brasil é um pão
amanhecido. A sociedade está:
* desmobilizada,
* subjugada por bandeiras corporativas e obsoletas,
* iludida pela concessão de direitos no papel mas não realizáveis.
Nossas
queixas cotidianas são relativas a direitos reconhecidos que não se efetivam,
direitos de mais e possibilidades de menos.
A
nossa pauta: o que é preciso reverter
Nas últimas décadas:
* o Brasil se
desindustrializou,
* sua economia cresceu mas
não se desenvolveu,
* jogou no lixo seu capital
social como o da qualificação profissional de um operariado que já foi de grande
competência;
* desvalorizou a agricultura
familiar e o que ela significa como meio de abastecimento alimentar da maioria
do povo;
* multiplicou o número de
escolas superiores mas desvalorizou as Universidades, instituições de pesquisa
avançada articulada com a educação e a formação de competências de alto nível.
* Proletarizou seus
cientistas e educadores, como se a Universidade fosse uma fábrica e uma
extensão do botequim da esquina. Enquanto China e Japão valorizaram, exploraram
e transformaram sua ciência e sua tecnologia em alavancas de progresso
industrial, econômico e social, nós recuamos para a função de país agrícola.
* Semeamos acampamentos,
favelas e cortiços em nossas cidades,
* inventamos fantasiosas
ilhas de confinamento urbano dos prósperos,
* desvalorizamos a vida
propriamente urbana e sua grande função civilizadora, a da cidade como lugar de
encontro e não de desencontro e violência.
Não há um só dia em que o
País fraturado não se desencontre nas ruas em demandas que berram os débitos,
reais e fantasiosos, que nos abatem como povo, nos desidentificam e nos dizem apenas o que
não somos sem dizer-nos o que somos e podemos.
Essa
[acima] é a pauta
da alternativa.
Quem
acompanhou a novela do impedimento viu seus políticos pela primeira vez, ao
vivo e em cores. Viu o melancólico de nossa concepção de política, viu o
declínio do patriotismo, da grandeza, da lucidez. Mas viu, também, a exceção de
grandes figuras da pátria, dos que veem o que a maioria não vê, dos que
compreendem a real natureza de nossos impasses. Temos uma reserva ponderável de
cidadãos capazes de secundar a missão do novo governo para que se liberte da
política de feira livre, do toma lá dá cá. O
novo presidente da República terá que romper consigo mesmo, com o que propôs
para a interinidade, que foi a continuação do que vitimou o PT. Michel
Temer tem uma alternativa, a de um governo de curativo das feridas da nação, de
superação de nossas contradições mais graves. Terá que renunciar a si mesmo
para se tornar o outro que somos, silenciado e mascarado em longos anos de
mistificação política. Ele terá que ser
o magistrado da nação, o artífice da ruptura, o artesão de nossa história
possível, o pai de um pacto de unidade nacional.
Nossa
principal armadilha:
Uma
classe política que não compreende o nosso destino
O
possível, o que podemos ser e de que carecemos, se debaterá com as armadilhas do caminho difícil, com o
exagerado poder dos que têm escassa compreensão do que é o destino de uma nação,
dos que acham que o Parlamento é um mercado, banca dos que põem preço na ação
política. Um problema do nosso republicanismo fragmentário e descentralizador é
o favorecimento do localismo na Constituição de 1988. As carências e urgências da União tornaram-se adjetivas nas mãos de
políticos que pensam e dirigem o País na perspectiva do município. A reforma política terá que ser feita, é urgente, é
preciso restituir a política à política e não reduzi-la aos políticos. Quais as
condições para propô-la?
A
questão social não se resolve com populismo
Há que resolver a crise
econômica, o que é necessário, é urgente mas não é o principal nem é a única
questão pendente. Resolver a crise econômica agravando a questão social é o grande
impasse já proposto. Imaginar que
atenuar o desemprego resolverá a crise social é pensar de menos e esperar
demais. Essa é a semente do país dividido, pois é esse o território do
populismo, que limita as políticas sociais ao supérfluo de subsídios, cotas e
favorecimentos, ao provisório e ao curto prazo. Políticas sociais devem ser políticas de Estado e não políticas de
subjugação a um partido e a determinado governante.
* JOSÉ DE SOUZA MARTINS é Professor Titular aposentado do
Departamento de Sociologia e Professor Emérito (2008) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo (FFLCH-USP). Foi o terceiro brasileiro, depois de Celso Furtado e
de Fernando Henrique Cardoso, a ocupar, em 1993-1994, a prestigiosa Cátedra Simón Bolivar da Universidade de
Cambridge, na Inglaterra, quando foi também eleito fellow de Trinity Hall. Foi professor visitante da Universidade da
Flórida (Gainesville, EUA) (Mellon
Visiting Professor) e da Universidade de Lisboa. Professor Honoris Causa da Universidade Federal de
Viçosa (20 de junho de 2013). Doutor
Honoris Causa da Universidade Federal da Paraíba (8 de novembro de 2013) e Doutor Honoris Causa da Universidade
Municipal de São Caetano do Sul (2 de Agosto de 2014). Autor de uma vasta
bibliografia, sobre o tema deste artigo, ele publicou neste ano: Do PT das Lutas Sociais ao PT do Poder
(Editora Contexto). Para saber mais sobre este sociólogo, clique aqui.
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