A FALÊNCIA DA HUMANIDADE
“Há um terrorismo de base que emana do controle
do dinheiro sobre a terra”, afirma o Papa
Instituto
Humanitas Unisinos
“Que passa no mundo de hoje que, quando se produz a
bancarrota de um banco, imediatamente aparecem somas escandalosas para salvá-lo,
mas quando se produz esta bancarrota da humanidade não há nem uma milésima
parte para salvar a estes irmãos que tanto sofrem? E assim o Mediterrâneo se
converteu num cemitério, e não somente o Mediterrâneo... tantos cemitérios
junto aos muros, muros manchados de sangue inocente”
PAPA FRANCISCO Ladeado por alguns dos participantes do 3º Encontro Mundial dos Movimentos Populares Sala Paulo VI - Vaticano Sábado, 5 de novembro de 2016 |
«Os
“3-T” [terra, teto e trabalho], esse
grito de vocês que faço meu, tem algo dessa inteligência humilde mas forte e
sanadora. Um projeto-ponte dos povos frente ao projeto-muro do dinheiro», disse o Papa Francisco no discurso
proferido no término do III Encontro
Mundial de Movimentos Populares, realizado em Roma.
“Faço
minhas as palavras do meu irmão o Arcebispo
Jerônimo de Grécia: «Quem vê os olhos
das crianças que encontramos nos campos de refugiados é capaz de reconhecer
imediatamente, na sua totalidade, a “bancarrota” da humanidade», asseverou
o Papa.
E
ele pergunta:
“Que
passa no mundo de hoje que, quando se produz a bancarrota de um banco,
imediatamente aparecem somas escandalosas para salvá-lo, mas quando se produz
esta bancarrota da humanidade não há nem uma milésima parte para salvar a estes
irmãos que tanto sofrem? E assim o
Mediterrâneo se converteu num cemitério, e não somente o Mediterrâneo... tantos cemitérios junto aos muros, muros
manchados de sangue inocente”.
DISCURSO DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS PARTICIPANTES DO
III ENCONTRO MUNDIAL DOS MOVIMENTOS POPULARES
Sala Paulo VI – Vaticano
Sábado, 5 de novembro de 2016
Irmãs
e irmãos, boa tarde.
Neste nosso 3º Encontro expressamos a mesma
sede, a sede de justiça, o mesmo grito: terra,
teto e trabalho para todos.
Agradeço a todos os delegados que vieram
das periferias urbanas, rurais e industriais dos cinco continentes, de mais de
60 países, para discutir, mais uma vez,
sobre como defender estes direitos que nos convocam. Obrigado aos bispos
que vieram para acompanhá-los. Obrigado aos milhares de italianos e europeus
que se uniram hoje ao encerramento deste encontro.
Obrigado
aos observadores e aos jovens comprometidos com a vida pública que vieram com
humildade escutar e aprender. Quanta
esperança tenho nos jovens! Agradeço também a você, senhor cardeal Turkson,
pelo trabalho que fez no dicastério; e gostaria também de recordar a
contribuição do ex-presidente José
Mujica, que está presente.
No
último encontro, na Bolívia, com maioria de latino-americanos, falamos da necessidade de uma mudança para
que a vida seja digna, uma mudança de estruturas; além disto, de como
vocês, os movimentos populares, são
semeadores desta mudança, promotores de um processo em que convergem milhares
de pequenas e grandes ações criativamente concatenadas, como em uma poesia; por
isso quis chamá-los “poetas sociais”;
e elencamos também algumas tarefas imprescindíveis para caminhar em direção a
uma alternativa humana diante da globalização da indiferença: 1. colocar a economia a serviço dos
povos; 2. construir a paz e a
justiça; 3. defender a Mãe Terra.
Naquele dia, na voz de uma carrinheira e de
um agricultor, fez-se a leitura das conclusões dos dez pontos de Santa Cruz de la Sierra, onde a palavra
mudança era repleta de grande conteúdo, era ligada às coisas fundamentais que
vocês reivindicam: trabalho digno para aqueles que são excluídos do mercado de
trabalho; terra para os camponeses e povos originários; moradia para as
famílias sem teto; integração urbana para os bairros populares; eliminação da
discriminação, da violência contra as mulheres e as novas formas de escravidão;
o fim de todas as guerras, do crime organizado e da repressão; liberdade de
expressão e de comunicação democrática; ciência e tecnologia a serviço dos
povos. Ouvimos também como vocês se
comprometeram a abraçar um projeto de vida que rejeite o consumismo e recupere
a solidariedade, o amor entre nós e o respeito pela natureza como valores
essenciais.
É a felicidade de “viver bem” que vocês reclamam, a “vida boa”, e não esse ideal egoísta que enganosamente inverte as
palavras e propõe a “boa vida”.
Nós, os que hoje estamos aqui, de origens,
crenças e ideias diferentes, talvez não estejamos de acordo em tudo.
Seguramente temos pensamentos diferentes sobre muitas coisas, mas concordamos
nesses pontos.
Soube também de encontros e oficinas
realizados em diversos países, onde se multiplicaram os debates à luz da
realidade de cada comunidade. Isso é muito importante porque as soluções reais
para as problemáticas atuais não sairão de uma, três ou mil conferências: devem
ser fruto de um discernimento coletivo que amadureça nos territórios junto com
os irmãos, um discernimento que se torne ação transformadora “segundo os lugares, os tempos e as pessoas”,
como dizia Santo Inácio. Caso contrário, corremos o risco das abstrações, de
“certos nominalismos declarativos (slogans) que são frases bonitas, mas não
conseguem apoiar a vida das nossas comunidades” (Carta ao Presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina,
19 de março de 2016).
O
colonialismo ideológico globalizante procura impor receitas supraculturais que
não respeitam a identidade dos povos. Vocês seguem
por outro caminho que é, ao mesmo tempo, local e universal. Um caminho que me
recorda como Jesus pediu para organizar a multidão em grupos de cinquenta para
distribuir o pão (Cf. Homilia na
Solenidade de Corpus Christi, Buenos Aires, 12 de junho de 2004).
Há pouco pudemos assistir ao vídeo que
vocês apresentaram como conclusão deste terceiro encontro. Vimos os rostos de
vocês nos debates sobre como enfrentar
“a desigualdade que gera violência”. Tantas propostas, tanta criatividade,
tanta esperança na voz de vocês que, talvez, sejam os que mais motivos teriam
para lamentar-se, permanecer paralisados nos conflitos, cair na tentação do
negativo. Mesmo assim vocês olham em
frente, pensam, discutem, propõem e agem. Parabenizo-os, acompanho-os,
peço-lhes que continuem a abrir caminhos e a lutar. Isto me dá força, nos dá
força. Acredito que este nosso diálogo, que se soma aos esforços de tantos milhões de pessoas que trabalham diariamente pela
justiça em todo o mundo, está lançando raízes.
O
terror e os muros
No entanto, esta germinação, que é lenta,
que tem os seus tempos como toda gestação, é ameaçada pela velocidade de um
mecanismo destrutivo que age em sentido contrário. Existem forças poderosas que podem neutralizar este processo de
amadurecimento de uma mudança que seja capaz de deslocar o primado do dinheiro
e colocar novamente no centro o ser humano.
Esse “fio invisível” de que falamos na Bolívia, essa estrutura injusta que liga
todas as exclusões que vocês sofrem, pode consolidar-se e transformar-se em um
chicote, um chicote existencial que, no Antigo Testamento, escraviza, rouba a
liberdade, fere sem misericórdia alguns e ameaça constantemente os outros, para
abater a todos como gado até onde quer o dinheiro divinizado.
Quem
governa então? O dinheiro.
Como
governa? Com o chicote do
medo, da desigualdade, da violência econômica, social,
cultural e militar
que gera sempre mais violência em uma espiral descendente que parece não acabar
nunca.
Quanta
dor, quanto medo! Há – eu disse recentemente –, há um
terrorismo de base que emana do controle
global do dinheiro sobre a terra e ameaça toda a humanidade. Deste
terrorismo de base se alimentam os terrorismos derivados, como o
narcoterrorismo, o terrorismo de Estado e aquele que alguns erroneamente chamam
de terrorismo étnico ou religiosos.
Nenhum povo, nenhuma religião é terrorista.
É verdade, existem pequenos grupos fundamentalistas em todos os lugares. Mas o terrorismo inicia quando “é expulsa a
maravilha da criação, o homem e a mulher, e colocado ali o dinheiro” (Entrevista coletiva no voo de retorno da
Viagem Apostólica à Polônia, 31 de julho de 2016). Esse sistema é terrorista.
Há quase cem anos, Pio XI previa o crescimento de uma ditadura econômica global que
ele chamou de “imperialismo
internacional do dinheiro” (Carta Encíclica Quadrasegimo Anno, 15 de maio de 1931, 109). A sala em que agora
nos encontramos chama-se “Paulo VI”, e foi Paulo
VI que denunciou há quase cinquenta anos a “nova forma abusiva de dominação econômica no campo social, cultural e
político” (Carta Encíclica Octogesima
Adveniens, 14 de maio 1971, 44). São palavras duras, mas justas de meus
predecessores que perscrutaram o futuro. A Igreja e os profetas disseram, há
milênios, aquilo que tanto escandaliza que o Papa repita neste tempo, em que
tudo isto atinge expressões inéditas. Toda a Doutrina Social da Igreja e o
magistério de meus predecessores se rebelam contra o ídolo
do dinheiro que reina ao invés de servir, tiraniza e aterroriza a
humanidade.
Nenhuma
tirania se sustenta sem explorar os nossos medos.
Por isso, toda a tirania é terrorista. E quando este terror, que foi semeado
nas periferias com massacres, saques, opressão e injustiça, explode nos centros
com diversas formas de violência, inclusive com atentados odiosos e covardes,
os cidadãos que ainda conservam alguns direitos são tentados pela falsa segurança dos muros físicos ou
sociais. Muros que fecham alguns e exilam outros. Cidadãos murados, aterrorizados, de um lado; excluídos, exilados, ainda mais aterrorizados, de outro. É essa a
vida que Deus nosso Pai quer para os seus filhos?
O
medo é alimentado, manipulado... Porque o
medo, além de ser um bom negócio para os mercadores de armas e de morte, nos enfraquece, nos desestabiliza, destrói
as nossas defesas psicológicas e espirituais, nos anestesia diante do
sofrimento alheio e, no final, nos
torna cruéis. Quando ouvimos que se festeja a morte de um jovem que talvez
tenha errado o caminho, quando vemos que se prefere a guerra à paz, quando
vemos que se difunde a xenofobia [aversão
ao estrangeiro, ao imigrante], quando constatamos que ganham terreno as propostas intolerantes; por trás desta crueldade
que parece massificar-se existe o frio sopro do medo.
Peço-lhes para que rezemos por todos aqueles que têm medo, rezemos para que Deus dê a eles coragem e que neste ano
da misericórdia possa amolecer os nossos corações. A misericórdia não é fácil,
não é fácil... exige coragem. Por isso, Jesus nos diz: “Não tenham medo” (Mt 14,27), porque a misericórdia é o melhor antídoto contra o medo. É muito melhor do
que os antidepressivos e dos ansiolíticos. Muito mais eficaz do que os muros,
as grades, os alarmes e as armas. E é
grátis: é um dom de Deus.
Queridos irmãos e irmãs, todos os muros caem. Todos. Não nos
deixemos enganar. Como vocês disseram: “Continuamos a trabalhar para construir
pontes entre os povos, pontes que nos permitem derrubar os muros da exclusão e
da exploração (Documento conclusivo do II
Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 11 de julho de 2015, Santa Cruz
de la Sierra, Bolívia). Enfrentemos o Terror com o Amor.
O
amor e as pontes
Um dia como este, um sábado, Jesus fez duas
coisas que, nos diz o Evangelho, precipitaram o complô para matá-lo. Passava
com os seus discípulos por um campo, uma plantação. Os discípulos estavam com
fome e comeram as espigas. Nada se diz sobre o “dono” daquele campo...
encontrava-se subjacente a destinação universal dos bens. O certo é que diante da fome Jesus deu prioridade à dignidade dos
filhos de Deus antes que a uma interpretação formalística, obsequiosa e
interessada da norma. Quando os doutores da lei se queixaram com indignação
hipócrita, Jesus recordou a eles que Deus
quer o amor e não sacrifícios, e explicou que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado (Cf. Mt
2,27).
Jesus enfrentou o pensamento hipócrita e
presunçoso com a inteligência humilde do
coração (Cf. Homilia, I Congresso de
Evangelização da Cultura, Buenos Aires, 3 de novembro de 2006), que prioriza sempre o ser humano e não
aceita que determinadas lógicas impeçam a sua liberdade de viver, amar e servir
o próximo.
E depois, neste mesmo dia [sábado], Jesus fez
algo “pior”, algo que irritou ainda mais os hipócritas e os soberbos que o
estavam observando porque procuram uma desculpa para capturá-lo. Ele curou a mão atrofiada de um homem.
A mão, este sinal tão forte do trabalhar, do trabalho. Jesus restituiu àquele homem a capacidade de trabalhar e com isso
restituiu-lhe a dignidade. Quantas mãos atrofiadas, quantas pessoas
privadas da dignidade do trabalho, porque os hipócritas, para defender sistemas
injustos, se opõem a que sejam curados.
Penso, às vezes, que quando vocês, os
pobres organizados, inventam o seu próprio trabalho, criando uma cooperativa,
recuperando uma fábrica falida, reciclando os descartes da sociedade de
consumo, enfrentando as inclemências do tempo para vender em uma praça,
reivindicando um pedaço de terra para cultivar e alimentar quem tem fome, quanto
vocês estão imitando Jesus, porque
buscam curar, mesmo que somente um pouquinho, mesmo se precariamente, essa
atrofia do sistema socioeconômico reinante que é o desemprego. Não me
surpreende que também vocês, às vezes, sejam vigiados ou perseguidos, nem me
surpreende que aos soberbos não interessa aquilo que vocês dizem.
Jesus, que naquele sábado arriscou a vida,
porque depois de curar aquela mão, fariseus e herodianos (Cf. Mc 3,6), dois
partidos opostos entre si, que temiam o povo e também o império, fizeram os
seus cálculos e confabularam para matá-lo. Sei
que muitos de vocês arriscam a vida. Sei que alguns não estão aqui hoje
porque arriscaram a vida... Mas não
existe amor maior do que dar a vida. Isto nos ensina Jesus.
Os “3-T” [terra, teto e trabalho], esse grito de vocês que
faço meu, tem algo daquela inteligência humilde, mas ao mesmo tempo forte e
curador. Um projeto-ponte
dos povos diante do projeto-muro do
dinheiro. Um projeto que visa o desenvolvimento humano integral. Alguns
sabem que o nosso amigo cardeal Turkson preside o dicastério que leva este
nome: Desenvolvimento Humano Integral. O contrário do desenvolvimento, se
poderia dizer, é a atrofia, a paralisia.
Devemos
ajudar a curar o mundo da sua atrofia moral. Este
sistema atrofiado é capaz de fornecer alguns implantes cosméticos que não são
verdadeiro desenvolvimento: crescimento econômico, progressos tecnológicos,
maior “eficiência” para produzir coisas que se compram, são usadas e jogadas
fora, envolvendo-nos a todos em uma vertiginosa dinâmica do descarte... mas não
permite o desenvolvimento do ser humano na sua integralidade, o desenvolvimento
que não se reduz ao consumo, que não se reduz ao bem-estar de poucos, que
inclui todos os povos e pessoas na plenitude da sua dignidade, usufruindo
fraternalmente a maravilha da criação. Este
é o desenvolvimento do qual temos necessidade: humano, integral, respeitoso com
a Criação.
A
bancarrota e o resgate
Queridos irmãos, quero compartilhar com
vocês algumas reflexões sobre outros dois temas que, junto com as “3-T” e a
ecologia integral, foram centrais em seus debates dos últimos dias e são
centrais neste tempo histórico.
Sei
que vocês dedicaram um dia ao drama dos migrantes, dos refugiados e dos
deslocados. O que fazer diante desta tragédia? No
dicastério cujo responsável é o cardeal Turkson existe um setor que se ocupa
destas situações. Decidi que, ao menos por um certo tempo, este setor vai ficar
submetido diretamente ao Pontífice, porque esta é uma situação infame, que
posso somente descrever com uma palavra que me saiu espontaneamente em
Lampedusa: vergonha.
Lá, assim como em Lesbos [Grécia], pude
ouvir de perto o sofrimento de tantas famílias expulsas de sua terra por
motivos econômicos ou violências de todos os tipos, multidões exiladas – disse
isto diante das autoridades de todo o mundo – por causa de um sistema socioeconômico injusto e de conflitos bélicos que não
provocaram, que não foram criados por aqueles que hoje sofrem o doloroso
desenraizamento da sua Pátria, mas antes muitos daqueles que se recusam a
recebê-los.
PAPA FRANCISCO Ao lado do Cardeal Tukson - Presidente do Dicastério do Desenvolvimento Humano Integral |
Faço minhas as palavras do meu irmão o Arcebispo Jerônimo da Grécia: “Quem vê
os olhos das crianças que encontramos nos campos de refugiados é capaz de
reconhecer imediatamente, na sua totalidade, a ‘bancarrota’ da humanidade” (Discurso no Campo de Refugiados de Moria,
em Lesbos, 16 de abril de 2016). O que acontece no mundo de hoje que, quando
ocorre a bancarrota de um banco, imediatamente aparecem somas escandalosas para
salvá-lo, mas quando acontece esta bancarrota da humanidade não existe sequer
uma milésima parte para salvar estes irmãos que sofrem tanto? E assim o
Mediterrâneo transformou-se em um cemitério, e não somente o Mediterrâneo...
tantos cemitérios próximos aos muros, muros manchados de sangue inocente.
O
medo endurece o coração e transforma-se em crueldade cega que se recusa a ver o
sangue, a dor, o rosto do outro. Quem disse isso
foi o meu irmão o Patriarca Bartolomeu:
“Quem tem medo de vocês não olhou nos
olhos de vocês. Quem tem medo de vocês não viu os rostos de vocês. Quem tem
medo de vocês não viu os filhos de vocês. Esquece que a dignidade e a liberdade
transcendem o medo e a divisão. Esquece que a migração não é um problema do
Oriente Médio e da África do norte, da Europa e da Grécia. É um problema do
mundo” (Discurso no Campo de
Refugiados de Moria, Lesbos, 16 de abril de 2016).
É, na realidade, um problema do mundo. Ninguém deveria ver-se obrigado a fugir da
própria Pátria. Mas o mal é duplo quando, diante daquelas terríveis
circunstâncias, o migrante se vê lançado nas garras dos traficantes de pessoas
para atravessar as fronteiras. E é triplo se, ao chegar à terra em que se pensava encontrar um futuro melhor, são
desprezados, explorados e até mesmo escravizados. Isto se pode ver em
qualquer canto de centenas de cidades.
Peço-lhes para fazerem todo o possível e
que nunca se esqueçam de que também Jesus, Maria e José experimentaram a
condição dramática dos refugiados. Peço-lhes para exercerem aquela
solidariedade tão especial que existe entre aqueles que sofreram. Vocês sabem
recuperar fábricas falidas, reciclar aquilo que outros jogam fora, criar postos
de trabalho, cultivar a terra, construir casas, integrar bairros segregados e
reclamar sem descanso como essa viúva do Evangelho que pede justiça
insistentemente (Cf. Lc 18,1-8).
Talvez
com o seu exemplo e a sua insistência, alguns Estados e Organizações
internacionais abrirão os olhos e adotarão as
medidas adequadas para acolher e integrar plenamente todos aqueles que, por um
motivo ou outro, buscam refúgio longe de casa. E também para enfrentar as causas profundas pelas
quais milhares de homens, mulheres e crianças são expulsos a cada dia de sua
terra natal.
Dar o exemplo e reclamar é um modo de fazer
política, e isso me leva ao segundo tema que vocês debateram no encontro: a relação entre povo e democracia. Uma
relação que deveria ser natural e fluída, mas que corre o perigo de ofuscar-se
até tornar-se irreconhecível. O abismo
entre os povos e as nossas atuais formas de democracia se alarga sempre mais em
consequência do enorme poder dos grupos econômicos e midiáticos que parecem
dominá-las.
Os movimentos
populares, eu sei disso, não são
partidos políticos e deixem que eu lhes diga que, em grande parte, aqui está a riqueza de vocês, porque
vocês expressam uma forma diversa, dinâmica e vital de participação social na
vida pública. Mas não tenham medo de entrar nas grandes discussões, na Política
com maiúscula, e cito novamente Paulo VI: “A
política é uma maneira exigente – se bem que não seja a única – de viver o
compromisso cristão a serviço dos outros” (Carta Apostólica Octosegima Adveniens, 14 de maio de
1971, 46).
Gostaria de sublinhar dois riscos que giram em torno da relação entre os movimentos populares
e a política:
*
o risco de deixar-se
formatar e
* o risco de deixar-se corromper.
Primeiro, não se deixar formatar, porque
alguns dizem: a cooperativa, o refeitório popular, a horta agroecológica, as
microempresas, o projeto dos planos assistenciais... até aqui tudo bem. Enquanto vocês se mantiverem limitados às
“políticas sociais”, enquanto vocês não colocarem em discussão a política
econômica ou a Política com maiúscula, vocês são tolerados. A ideia das
políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com
os pobres, nunca dos pobres e
muito menos inserida em um projeto que reúna os povos, me parece, às vezes, uma
espécie de caminhão caçamba maquiado para conter o descarte do sistema.
Quando vocês, a partir da sua relação com o
território, da sua realidade cotidiana, do bairro, do local, da organização do
trabalho comunitário, das relações de pessoa a pessoa, ousarem colocar em discussão as “macrorrelações”, quando gritarem,
quando pretenderem indicar ao poder um planejamento mais integral, então vocês não serão mais tolerados tanto,
porque estarão saindo do formato, estarão se colocando no terreno das grandes
decisões que alguns pretendem monopolizar em pequenas castas. Assim, a
democracia se atrofia, torna-se um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade,
vai se desencarnando porque deixa fora o povo na sua luta cotidiana pela
dignidade, na construção do seu destino.
Vocês,
organizações dos excluídos e tantas organizações de outros setores da
sociedade, são chamados a revitalizar, a refundar as democracias que estão passando por uma
verdadeira crise. Não caiam na tentação da limitação
que os reduz a atores secundários, ou pior ainda, a meros administradores da
miséria existente. Neste tempo de
paralisias, de desorientação e de propostas destrutivas, a participação como
protagonistas dos povos que buscam o bem comum pode vencer, com a ajuda de
Deus, os falsos profetas que exploram o medo e o desespero, que vendem
fórmulas mágicas de ódio e crueldade ou de um bem-estar egoísta e uma segurança
ilusória.
Sabemos que “enquanto não forem
radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia
absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas
estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e,
em definitivo, problema algum. A
desigualdade é a raiz dos males sociais” (Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 202). Por isso, disse
e repito, “o futuro da humanidade não
está somente nas mãos dos grandes líderes, das grandes potências e das elites.
Está, sobretudo, nas mãos dos povos; na sua capacidade de organizar-se e
também nas mãos que irrigam, com humildade e convicção, este processo de
mudanças” (Discurso ao II Encontro
Mundial dos Movimentos Populares, Santa Cruz de la Sierra, 9 de julho de
2015).
Também a Igreja pode e deve, sem pretender
ter o monopólio da verdade, pronunciar-se e agir especialmente diante das
“situações em que se tocam as chagas e os sofrimentos dramáticos, e nos quais
estão envolvidos os valores, a ética, as ciências sociais e a fé” (Pronunciamento no Encontro de Juízes e
Magistrados contra o Tráfico de Pessoas e o Crime Organizado, Vaticano, 3
de junho 2016).
O segundo risco, dizia-lhes, é deixar-se
corromper. Como a política não é um assunto dos “políticos”, a corrupção não é um vício exclusivo da
política. Existe corrupção na
política, existe corrupção nas
empresas, existe corrupção nos meios
de comunicação, existe corrupção nas
Igrejas e existe corrupção também nas
organizações sociais e nos movimentos populares. É justo dizer que existe
uma corrupção radicada em alguns âmbitos da vida econômica, em particular na
atividade financeira, e que é menos notícia do que a corrupção diretamente e
ligada ao âmbito político e social. É
justo dizer que muitas vezes os casos de corrupção são utilizados com más
intenções.
Mas também é justo esclarecer que aqueles que escolheram uma vida de serviço,
têm uma obrigação adicional que se soma à honestidade com que qualquer
pessoas deve agir na vida. A medida é muito alta: é necessário viver a vocação de servir com um forte sentido de
austeridade e a humildade. Isso vale para os políticos, mas vale também
para os dirigentes sociais e para nós pastores.
A qualquer
pessoa que seja muito apegada às coisas materiais ou ao espelho, a quem ama o
dinheiro, os banquetes exuberantes, as mansões suntuosas, as roupas refinadas,
os carros de luxo, aconselharia a entender o que está acontecendo em seu
coração e a rezar a Deus para que o liberte destes apegos. Mas, parafraseando o
ex-presidente latino-americano que se encontra aqui, aquele que está afeiçoado a todas estas coisas, por favor, não entre na
política, não entre em uma organização social ou em um movimento popular,
porque causaria muito dano a si mesmo e ao próximo e mancharia a nobre causa
que assumiu.
Diante
da tentação da corrupção, não existe melhor remédio do que a austeridade; e praticar a
austeridade é, também, pregar com o exemplo. Peço-lhes que não subestimem o valor do exemplo, porque tem mais força do que mil
palavras, de mil panfletos, de mil “curtidas”, de mil retweets, de mil vídeos no Youtube.
O exemplo de uma vida austera a serviço
do próximo é o melhor modo para promover o bem comum e o projeto-ponte dos 3-T.
Peço-lhes, dirigentes, para não se cansarem de praticar esta austeridade e peço
a todos que exijam dos dirigentes essa austeridade, que – por outro lado – os
fará muito felizes.
Queridas irmãs e irmãos, a corrupção, a soberba
e o exibicionismo dos dirigentes aumenta o descrédito coletivo, a
sensação de abandono e alimenta o mecanismo do medo que sustenta este sistema
iníquo.
Gostaria, para concluir, pedir-lhes para continuar a combater o medo
com uma vida de serviço, solidariedade e humildade em favor dos povos e
especialmente daqueles que sofrem. Vocês vão errar muitas vezes, todos
erramos, mas se perseveramos neste caminho, cedo ou tarde, veremos os frutos. E
insisto, contra o terror, o melhor
remédio é o amor. O amor tudo cura.
Alguns sabem que depois do Sínodo sobre a Família escrevi a Amoris Laetitia, um documento sobre o
amor em cada família, mas também naquela outra família que é o bairro, a
comunidade, o povo, a humanidade. Alguém de vocês me pediu para distribuir um
fascículo que contém um fragmento do capítulo quatro deste documento. Penso que
vão entregá-lo a vocês na saída. E, portanto, com a minha bênção. Lá se
encontram alguns “conselhos úteis” para praticar o mais importante dos
mandamentos de Jesus.
Na Amoris
Laetitia cito um falecido líder afroamericano, Martin Luther King, que sabia sempre escolher o amor fraterno até
mesmo em meio às piores perseguições e humilhações. Quero recordar esta
passagem com vocês: “Quando te elevas ao nível do amor, da sua grande beleza e
poder, a única coisa que procuras derrotar são os sistemas malignos. Às pessoas
que caíram na armadilha desse sistema, tu as amas, mas procuras derrotar o
sistema (...) Ódio por ódio só
intensifica a existência do ódio e do mal no universo. Se eu te bato e tu
me bates, e te devolvo a pancada e tu me devolves a pancada, e assim por
diante, obviamente continua-se até o infinito; simplesmente nunca termina.
Nalgum momento, alguém deve ter um pouco de bom senso, e esta é a pessoa forte.
A pessoa forte é aquela que pode quebrar
a cadeia do ódio, a cadeia do mal” (n. 118; Sermão na Igreja Batista da Avenida Dexter, Montgomery, Alabama, 17
de novembro de 1957).
Agradeço-lhes novamente pela sua presença.
Agradeço-lhes pelo seu trabalho. Desejo pedir a Deus nosso Pai que os acompanhe
e os abençoe, que os cumule de seu amor e os defenda no caminho, dando-lhes em
abundância a força que nos mantém em pé e nos dá a coragem para romper a cadeia
do ódio: a força é a esperança. Peço-lhes, por favor, para rezarem por
mim, e aqueles que não podem rezar, já sabem, pensem bem de mim e me enviem uma
boa onda. Obrigado.
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