LIÇÕES QUE O MUNDO ESTÁ NOS DANDO

Um presidente a mais, um a menos

Leandro Karnal

O que me deixa impressionado é o imenso grupo que considera
que democracia só existe quando vence o candidato que eu aprovo
LEANDRO KARNAL
Historiador e Professor da UNICAMP

A eleição norte-americana foi recebida como uma bomba de nêutrons por muitas pessoas. As pesquisas pareciam indicar uma ligeira folga a favor de Hillary Clinton. Abertas as urnas, houve a surpresa na manhã do dia 9 de novembro. Especialistas sempre dizem que previam tudo, que era esperado, etc. Eu devo reconhecer: o resultado foi uma completa surpresa para mim, e, provavelmente, para o próprio Trump. Houve surpresa, mas não estou entre os pessimistas. Por quê?

Escrevi no Estadão [jornal O Estado de S. Paulo], na véspera do resultado, que não havia diferenças abissais entre a candidata democrata e o republicano. Não chego a endossar a tese de Noam Chomsky (existe um partido com duas facções), mas as semelhanças são tão notáveis que intitulei o artigo Trumpillary. Ambos jogavam para a torcida: uma dizendo coisas para agrado de todos e o outro detonando tudo. A grosseria de Trump cativou mais o eleitorado do que a retórica teatral de Hillary. Como numa novela, identifico-me mais com um dos atores, mas, por vezes, esqueço-me que o autor é o mesmo para todos. Trump e Hillary não são idênticos, mas pertencem a duas espécies do mesmo gênero. Vamos adensar a reflexão.

William Jefferson Clinton, o marido de Hillary, foi um dos presidentes mais ricos dos EUA. Se eleita, a esposa de Bill teria sido também uma das milionárias a entrar na Casa Branca. Democratas milionários são comuns: os Kennedys, os Roosevelts, os Clintons. Lembremos que Bill Clinton já era rico, mas que ficou ainda mais após a presidência. Num único mês de 2014, o ex-presidente teria recebido quase dois milhões de dólares por seis palestras. Temos aqui um ótimo plano de carreira para o quase aposentado Obama. Trump, Bush 1, Bush 2 e Hoover mostram que republicanos também amam acumular.

Já houve gente menos dourada em Washington. Truman tinha a fama de não possuir patrimônio expressivo. Um dos quatro presidentes assassinados dos EUA, James Garfield, foi porteiro e carpinteiro antes da presidência. Garfield, tal como o famoso Lincoln, morou numa cabana de lenhador. São exceções antigas: a norma das últimas décadas é de gente mais abastada. Faz parte de uma reflexão do eleitorado dos EUA: se o candidato não conseguiu nem arrumar sua vida, como arrumará a do país? Lembrem-se de que a mentalidade americana média não vê no dinheiro um desvio de caráter.

Donald Trump não parece ser um modelo moral, especialmente no trato com as mulheres. Nisso também não é original. O público jovem lembra dos escândalos de Bill Clinton com Monica Lewinski. Os mais velhos recordarão que Kennedy sofria de uma espécie de priapismo, um estado de sexualidade exuberante. O livro O Lado Negro de Camelot [publicado no Brasil pela L&PM Editores, em 1998], do jornalista Seymour Hersh, faz uma análise assustadora sobre o carismático presidente católico. Lyndon Johnson, seu sucessor, trazia a rudeza descarada que alguns associam ao seu estado natal, o Texas. Testemunhas falam de frases impublicáveis quando ele, em pleno salão oval, beliscava partes pudendas da sua esposa, Lady Bird Johnson. Bem, ao menos era a consorte...

O batista georgiano Jimmy Carter parecia ser, exemplarmente, recatado. Uma incontinência verbal arranha sua vitrina pudica. Ele afirmou que teria pensado de forma impura (pensado, apenas) em mulheres e teria, assim, de acordo com uma regra bíblica, cometido adultério (I’ve looked on a lot of women with lust. I’ve committed adultery in my heart many times). Essa afirmação, dada à revista Playboy, foi, aparentemente, a coisa mais grave que ele fez na vida. Mas Carter não encerrou a presidência com popularidade ou com fama de bom administrador. A crise dos reféns do Irã, a inflação e até um ataque de um coelho assassino ao seu barco de pesca (sim leitor, você leu corretamente, pesquise sobre o “rabbit incident”) fizeram com que o mais puro dos presidentes terminasse com a fama de incompetente e fraco. Kennedy fornicava e Carter fantasiava. O luxurioso é um dos mais queridos governantes na memória americana e o casto com imaginação continua mal avaliado.

Volto ao eixo narrativo. O presidente dos EUA tem de dividir quase tudo com um Congresso forte. Trump terá maioria, mas não é um republicano autêntico e conta com a antipatia dos caciques do Capitólio. O posicionamento do Congresso ainda é nebuloso para o quadriênio 2017-2020. O Banco Central Americano (o FED) tem muito mais autonomia do que o brasileiro. Parte das decisões financeiras foge à presidência. Apesar da opinião dos críticos, os EUA são um país de liberdade de imprensa real. A economia americana tem vida própria e as instituições são sólidas. Querem exemplos? O atual presidente é popular e carismático, mas lutou muito para aprovar seu modelo de plano de saúde, o Obamacare. A simples promessa de fechar Guantánamo não foi, de fato, cumprida. O chamado “homem mais poderoso do mundo” tem limites notáveis.

Poderia argumentar muito mais. Enfatizo minha posição: Trump tem grande talento cênico com suas caras e bocas. A personagem parece, por vezes, extraída da uma opereta cômica, mas ele não é notavelmente distinto de uma tradição da presidência. É provável, caro leitor, que sua vida siga absolutamente como sempre foi. O fetiche da política é compreensível. O que me deixa impressionado é o imenso grupo que considera que democracia só existe quando vence o candidato que eu aprovo. Um bom domingo a todos vocês.

O preço da perversidade

José de Souza Martins

Tanto nos Estados Unidos do presidente eleito Trump como no Brasil das
últimas eleições, as urnas têm rechaçado o capitalismo da caridade iníqua
e da pobreza conveniente, diz sociólogo
Homer Simpson acompanha o discurso de Donald Trump no desenho animado "Os Simpsons"

Um conjunto relativamente extenso de questões está vinculado à inesperada eleição do republicano Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, derrotando no colégio eleitoral Hillary Clinton, democrata, que teve a maioria dos votos populares. Questões relativas ao fato de que estas eleições americanas representaram o ápice de um processo político mundial de redefinição da própria política, de anulação dos sujeitos tradicionais e típicos da concepção de política inaugurada com a Revolução Francesa, da própria concepção de povo. As transformações neste episódio não dizem respeito apenas à sociedade americana e ao capitalismo que ela representa e centraliza.

Na campanha, Trump não falou em nome de uma doutrina política nem mesmo em nome de seu partido. Falou em nome da multidão que não se identifica com os canais históricos de expressão da vontade política. Falou em nome da antipolítica, de um capitalismo que não é o capitalismo da Bolsa, de quem especula e ganha sem trabalhar, mas sim o capitalismo do bolso, de quem só pode ganhar se tiver trabalho. Ainda assim, esses eleitores são os que pensam o trabalho no marco da possibilidade de ascensão social, de negar-se sendo o outro que a sociedade de consumo promete. Trump falava sério. Não é estranho que seu primeiro discurso tenha sido um discurso de teor keynesiano, o trabalho gerador de emprego e renda para reincluir os esquecidos. Um plausível discurso rooseveltiano. Mas há um milenarismo bufo em sua fala populista e nacionalista, que não houve em outros atores bufos da política contemporânea, como Bóris Yeltsin, que demoliu a União Soviética sem propiciar sua superação. Ou como Berlusconi, melancólica expressão da decadência da Itália culta e civilizada.

O voto desta eleição americana foi contra o que representa Wall Street, mas não foi contra o que representa o Tio Patinhas. A personagem decisiva no eleitor decisivo foi, mesmo, a classe média do Pato Donald, com sua frustração e sua ira acumuladas nas várias décadas da globalização que em vários lugares anulou identidades nacionais, aniquilou regras históricas de integração social e de atuação política, que aplainou as fantasias da igualdade jurídica na competição com base na desigualdade econômica. Não há aí nenhuma novidade: sob a máscara da cidadania perfeita a sociedade moderna tem sido a sociedade da iniquidade perfeita, a dos ardis que dizem a cada um o que é não sendo.

As pesquisas eleitorais enganaram os analistas costumeiros munidos de elaboradas técnicas de adivinhação do que vai acontecer. Só o Los Angeles Times, pró-Clinton, associado à Universidade do Sul da Califórnia, acertou, fazendo suas previsões com base em minúcias de mentalidade e de comportamento eleitoral e político, supostamente irrelevantes, que acabariam decisivas no resultado final das eleições. Mais antropologia e sociologia do que ciência política.
Nesta charge se lê:
"Mas ele é tão rude! Tão inflexível! Simplista!
Esta multidão não está aí com nunces."

Nesse assunto, as ciências sociais se equivocaram ao deixar de lado o que é próprio do homem comum e cotidiano dos tempos atuais. E, ao deixarem de lado em suas análises a extensa categoria de pessoas que nem são ricas nem são pobres, motivadas por carências próprias, abandonadas pelo classificacionismo pseudo-sociológico que conhece por imputação e não por investigação, mais dedutivo do que indutivo, mais para confirmar o supostamente sabido do que para descobrir o não sabido. Deixaram de lado as multidões tolhidas e silenciadas, as vítimas da manipulação política e ideológica para as quais não há lugar no catálogo de anomalias relevantes da sociedade atual. Caso do desemprego, dos favorecimentos falsamente corretivos da pobreza, os recursos de maquiagem dos defeitos e feiuras do mundo contemporâneo. Caíram nas ilusões que inventaram.

Isso tem acontecido também aqui no Brasil, os analistas perdidos mais entre acusar do que explicar, aprisionados pela estreiteza de considerações pouco convincentes sobre direita e neodireita. Não será por aí que proporão a compreensão do que vem acontecendo no País, especialmente desde as manifestações de rua de 2013, até a cassação de Dilma Rousseff e ainda o que virá pela frente. Criaram o artifício do neo-isto, neo-aquilo, que acaba sendo neo-coisa-nenhuma: neoliberalismo, neodireitismo, neoesquerdismo; neopentecostalismo político.

Na verdade, lá e cá, os eleitores destas manifestações eleitorais recentes opuseram-se ao capitalismo da ordem social regulada pelos auxílios, benefícios e favorecimentos aos desvalidos e marginalizados, os sobrantes, desempregados e subempregados, os estrangeiros clandestinos e baratos, à pobreza conveniente e lucrativa. Ao capitalismo de remendos e curativos, de caridades compreensíveis mas iníquas do ponto de vista dos que sucumbem sob o peso de taxações, de tributações que mantêm bolsas e cotas, à violação do princípio da igualdade e da competição, a isso reage eleitoralmente a vítima. Mandaram o recado: não se corrige perversidades econômicas com injustiças.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Caderno 2 / Colunistas – Domingo, 13 de novembro de 2016 – Pág. C7 – Internet: clique aqui; Suplemento ALIÁS – Domingo, 13 de novembro de 2016 – Pág. E2 – Internet: clique aqui.

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