UM VENENO VENDIDO COMO ANTÍDOTO!
"Trump é um veneno, vendido como antídoto
aos males de hoje"
Entrevista
com Zygmunt Bauman
Filósofo, sociólogo e escritor polonês
Giuliano
Battiston
Revista
“L’Espresso” – Itália
11-11-2016
A vitória eleitoral de Donald Trump é um sintoma
alarmante:
ela reflete o divórcio já existente entre poder e
política, do qual deriva
um vazio, uma lacuna preenchida por aqueles que
prometem soluções fáceis
e imediatas a problemas complexos e sistêmicos,
recorrendo ao rico reservatório da retórica populista
ZYGMUNT BAUMAN |
Para
Zygmunt Bauman, decano dos
sociólogos europeus, um dos mais renomados pensadores contemporâneos, a vitória eleitoral de Donald Trump é um
sintoma alarmante: ela reflete o divórcio já existente entre poder e política, do qual deriva um vazio, uma lacuna preenchida por
aqueles que prometem soluções fáceis e imediatas a problemas complexos e
sistêmicos, recorrendo ao rico reservatório da retórica populista.
Trump – explica Bauman à revista L’Espresso – soube jogar habilmente a carta do homem fora do sistema e do homem
forte, combinando uma política identitária discriminatória e a ênfase nas
ansiedades econômicas dos cidadãos estadunidenses, filhas da passagem de um
modelo econômico inclusivo a um modelo que exclui, marginaliza e cria
verdadeiros exilados.
Trump
se apresentou como o antídoto às incertezas do nosso tempo, mas é um veneno,
defende Zygmunt Bauman, razão pela qual a
vitória do empresário estadunidense leva a pressagiar o risco de que os
tradicionais mecanismos de tutela democrática sejam substituídos pela
"aglutinação do poder em modelos autoritários, até mesmo ditatoriais".
Os
esquecidos do novo século fizeram a revolução. À direita, porque a esquerda não
os quis ver. Um choque epocal que não
diz respeito apenas aos Estados Unidos, mas que abala o próprio conceito de
Ocidente.
DONALD JOHN TRUMP |
Eis
a entrevista.
Nos
Estados Unidos da América (EUA) e na Europa, a reação predominante à vitória de
Trump, ao menos nos ambientes progressistas, foi de espanto e de medo. Alguns
falaram de um "grande perigo", outros de "um desafio ao modelo
democrático ocidental", outros ainda de "uma tragédia para a
república estadunidense e para a Constituição". Esses tons às vezes
apocalípticos lhe parecem adequados?
Zygmunt Bauman: As visões apocalípticas
despontam sempre que as pessoas entram no "grande território desconhecido": quando estamos certos de que
nada, ou muito pouco, continuará como está e não temos nenhum indício sobre o que
irá ocorrer ou sobre o que provavelmente irá substituir aquilo que deixamos
para trás. As reações à vitória de Trump proliferaram rapidamente. O
surpreendente é que são todas consensuais: assim como aconteceu no caso da
votação pelo Brexit [1], interpreta-se o voto em Trump como um
protesto popular contra o establishment
e a elite política do país como um todo, em relação aos quais uma grande
parte da população amadureceu uma crescente frustração por ter desatendido as
expectativas e não ter mantido as promessas feitas. Não surpreende que tais
interpretações estejam particularmente difundidas entre aqueles que têm fortes
interesses adquiridos na manutenção do atual establishment político.
Enquanto
isso, Trump jogou justamente a carta do homem de fora [do sistema]...
Zygmunt Bauman: Não fazendo parte de tal
elite, não tendo ocupado nenhum cargo eletivo, provindo "de fora do establishment político" e estando
em forte desacordo até mesmo com o partido do qual era formalmente membro, Trump ofereceu uma oportunidade única para
uma condenação, sem apelo, contra todo o sistema político. O mesmo aconteceu
no caso do referendo britânico, quando todos os principais partidos políticos
(dos conservadores ao Labour e aos liberais) se uniram no pedido de permanecer
na União Europeia, de modo que cada
cidadão pôde usar o próprio voto para expressar o nojo pelo sistema político
como um todo.
Outro
fator complementar foi o notável anseio
da população para que a infinita disputa parlamentar, ineficaz e impotente,
fosse substituída pela vontade indomável e incontestável de um "homem
forte" (ou de uma mulher forte), capaz, com a sua determinação e com
os seus dotes pessoais, de impôr, de modo imediato, sem hesitação e
procrastinação, soluções rápidas, atalhos, decisões de verdade. Trump construiu
habilmente a sua imagem pública como uma pessoa rica nessas qualidades com as
quais o eleitorado sonhava.
Estes
recém-citados não são os únicos fatores que contribuíram para o triunfo do
Trump, mas, sem dúvida, são cruciais. Ao contrário, o pertencimento de 30 anos
de Hillary Clinton ao establishment e a sua agenda política fragmentada e
compromissada jogaram contra a popularidade da sua candidatura.
Você
concorda com aqueles que chegam a ler a vitória de Trump como uma manifestação
da crise do modelo democrático ocidental?
Zygmunt Bauman: Eu acho que estamos assistindo à acurada evisceração [2] dos
princípios da "democracia", que se presumia que fossem intocáveis.
Eu não acredito que o termo em si será abandonado, ao menos como termo para
descrever um ideal político, até porque esse "significante", como
definiria Claude Levi-Strauss,
absorveu e ainda é capaz de gerar muitos e diferentes "significados".
Mas há uma clara possibilidade de que os
tradicionais mecanismos de salvaguarda (como a divisão de Montesquieu do poder em três âmbitos autônomos, o legislativo, o executivo e o judiciário,
ou o sistema britânico de checks and
balances) saiam de algum modo do
favor público e sejam desprovidos de significado, substituídos de modo
explícito ou de fato pela aglutinação do poder em modelos autoritários ou até
mesmo ditatoriais.
As
citações que você relatou como reações à vitória de Trump indicam, todas, uma
preocupação comum, são sintomáticas de uma tendência crescente, que existe: a
tendência de trazer de volta – por assim dizer – o poder dos nebulosos picos
elitistas onde havia sido colocado e para onde foi arrastado. Uma tendência,
portanto, de restaurar o poder dentro de uma comunicação direta entre o homem
forte na cúpula, de um lado, e, de outro, a agregação dos seus defensores e
sujeitos de poder, equipados com as redes sociais como instrumentos de doutrinação
e de sondagem das opiniões.
Durante
a campanha eleitoral, Trump insistiu muito nas questões raciais e no
nacionalismo mais insular e discriminatório, mas não apelou apenas a esses
temas. Para além dos ataques sistemáticos contra os "diferentes", ele
jogou a carta da incerteza econômica de todos aqueles cidadãos estadunidenses
que têm a percepção de terem sido defraudados pelos processos de globalização.
Os dois aspectos – a ansiedade econômica
e a ansiedade em relação aos
"outros" – estão ligados? Como?
Zygmunt Bauman: O truque foi justamente o de
conectar os dois aspectos, torná-los inseparavelmente ligados e reforçá-los
mutuamente. Foi isso que Trump conseguiu
fazer, um supremo impostor (embora não seja o único no panorama político
mundial). Estou inclinado a ir ainda mais longe na análise do uso que Trump fez do casamento entre
política identitária e ansiedade econômica, porque acredito que ele
conseguiu condensar todos os aspectos e os setores da incerteza existencial que
persegue aquilo que restou da classe trabalhadora e da classe média, doutrinando aqueles que sofrem com a ideia
de que a expulsão dos estrangeiros, daqueles que são etnicamente diferentes,
dos estrangeiros recém-chegados represente a tão cobiçada "solução rápida" que poderia reembolsá-los,
de uma vez só, por toda sua ansiedade e incerteza.
Entre
aqueles que votaram em Trump, alguns fazem parte da categoria dos
"expulsos": aqueles cidadãos que faziam parte de um "contrato
social", mas que foram expulsos dele à força, junto com aqueles, jovens
mas não só, que não faziam parte dele e nunca o serão no futuro. A vitória de
Trump representa o fim do modelo econômico inclusivo, keynesiano, do
pós-guerra, substituído por um modelo de sinal oposto, que exclui?
Zygmunt Bauman: A passagem de uma visão de
mundo, de uma mentalidade e de uma política econômica que inclui a uma que
exclui não é nova, de fato. Foi uma passagem estreitamente sincronizada com
outro salto qualitativo, o de uma
sociedade de produtores a uma sociedade de consumidores, que não teria sido
possível sem a marginalização, ou seja, a criação
de uma "subclasse", que não só está degradada em relação à
sociedade de classes, mas também foi totalmente exilada dela, uma categoria de "consumidores
fracassados", tão excluída a ponto de não pode ser readmitida. A atual
tendência à "securitização" dos problemas sociais põe mais água no
mesmo moinho: torna as redes de exclusão ainda mais amplas, enquanto transfere
aqueles que acabam nessas redes de uma categoria que, embora inferior, continua
sendo de sinal "positivo", a uma divisão que, embora suave, continua
sendo mortal, sinistra e tóxica.
Publicado no ano 2000 aqui no Brasil Em italiano, o título desta obra é "La Solitudine del Cittadino Globale" (tradução: A Solidão do Cidadão Global) |
Em
alguns dos seus livros, por exemplo em "A solidão do cidadão global",
o senhor analisa aquilo que define como "a trindade malvada", a incerteza,
a insegurança e a vulnerabilidade, sentimentos
predominantes em um mundo em que ocorreu o divórcio entre poder e política. É
inevitável que tal divórcio leve ao homem forte ou ao populismo?
Zygmunt Bauman: Sim, eu tendo a acreditar
que é inevitável. O divórcio ao qual você se refere deixa atrás de si um fosso
– uma lacuna que está aumentando assustadoramente – do qual emana a combinação venenosa entre desespero e
infelicidade. Os instrumentos ortodoxos, que nós acreditávamos que fossem
familiares e que estivessem disponíveis para combater e rejeitar eficazmente os
problemas e as ansiedades que nos afligem, já foram superados. Acima de tudo,
não se acredita mais que eles possam manter aquilo que prometem. Para uma
sociedade na qual cada vez menos pessoas se lembram, em primeira mão, do que
significava viver sob um regime totalitário ou ditatorial, o homem forte – ainda não experimentado – não parece um veneno, mas um
antídoto: pelas suas supostas capacidades de saber fazer as coisas, pelas
soluções rápidas e instantâneas, pelos efeitos imediatos que ele promete
trazer como bagagem à sua nomeação.
Beppe
Grillo, o líder italiano do Movimento
Cinque Stelle [3], ressaltou as semelhanças entre as
vitórias eleitorais do seu partido e a de Trump, escrevendo que "são
aqueles que ousam, os obstinados, os bárbaros, que levarão o mundo para a
frente. E nós somos os bárbaros". Chegou a hora de que o establishment realmente faça as contas
com os novos bárbaros?
Zygmunt Bauman: Na Europa, os vários Grillo são muito numerosos. Para aqueles para os quais a civilização
fracassou, os bárbaros são os salvadores. Em alguns casos, é nisso que eles
se esforçam, de todos os modos, em levar a acreditar, para convencer os ingênuos de que é realmente assim. Em outros casos, é
nisso que desejam acreditar ardentemente aqueles que foram abandonados e
esquecidos na distribuição dos grandes dons da civilização. Alguns membros do
establishment poderiam estar impacientes para aproveitar a oportunidade, já que
aqueles que acreditam na vida póstuma,
às vezes, estão dispostos a se suicidar.
N O T A S
[ 1 ]
BREXIT é a abreviação das palavras
em inglês Britain (Grã-Bretanha) e exit (saída). Designa a saída do Reino
Unido da União Europeia. De fato, a maioria dos votantes ingleses apoiou essa
saída no plebiscito ocorrido no dia 23 de junho de 2016 em toda a Grã-Bretanha.
[ 2 ] EVISCERAÇÃO
é o ato de retirar tripas, vísceras a um animal ou pessoa. Símbolo de ato
brutal, violento.
[ 3 ] MOVIMENTO CINQUE STELLE
(tradução: Movimento Cinco Estrelas),
conhecido pela sigla M5S, é um partido político italiano fundado em Milão, no
dia 4 de outubro de 2009 pelo cômico e ativista político Beppe Grillo e pelo empresário da internet Gianroberto Casaleggio, seguindo os passos da experiência do
movimento Amigos de Beppe Grillo,
ativo deste 2005, e das Listas Cívicas a
Cinco Estrelas (Liste Civiche a
Cinque Stelle) apresentadas pela primeira vez às eleições administrativas
de 2009. Esse partido não admite uma definição como sendo de direita ou
esquerda. Ideologicamente e organizacionalmente, o Movimento foi comparado aos Partidos Piratas do norte europeu, ao Movimento Occupy e aos Indignados da Espanha. Em 2014,
contribuiu para criar no Parlamento Europeu o grupo político eurocético da
Europa da Liberdade e da Democracia Direta (Fonte: Wikipedia).
Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. Acesse a versão italiana
desta entrevista, clicando aqui.
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