Os lobos entrando pela porta dos fundos
A esquerda abriu espaço e legitimou os
evangélicos na política
Entrevista
com Ricardo Mariano
Professor
de sociologia da Universidade de São Paulo (USP)
Gil Alessi
Uma das consequências da vitória de Crivella será o
aprofundamento das parcerias entre o Estado e as igrejas evangélicas,
principalmente na área da Saúde. Em muitos casos é um recurso público sendo
instrumentalizado para fins religiosos
EDUARDO PAES (atual Prefeito do Rio de Janeiro) e PEDRO PAULO (seu candidato derrotado a Prefeito nas eleições de 2016): tudo já começou errado, aí Crivella aproveitou!!! |
Um
bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus vai assumir, em 2017, o
comando da segunda maior cidade do Brasil, o Rio de Janeiro. Veterano de
disputas para o Governo estadual e para o comando da capital fluminense, Marcelo Crivella (PRB) seguiu nestas
eleições um script já conhecido de políticos evangélicos. Segundo Ricardo
Mariano, professor de sociologia da Universidade de São Paulo e autor do livro Neo Pentecostais (Edições Loyola), essa estratégia consiste em se distanciar o máximo
possível da Universal e adotar um discurso mais palatável para o eleitor.
Para o professor, uma das consequências da vitória de Crivella será o aprofundamento das parcerias entre o Estado
e as igrejas evangélicas, principalmente na área da Saúde. "Em muitos
casos é um recurso público sendo
instrumentalizado para fins religiosos", afirma.
Eis
a entrevista.
Quais
os motivos que levaram à eleição de Marcelo Crivella no Rio? O voto evangélico
explica isso?
Ricardo Mariano: É necessário olhar o
cenário de disputa local. O que ocorreu ali foi um erro crasso do PMDB, particularmente do Eduardo Paes, de lançar como candidato o Pedro Paulo, que
tinha uma enorme rejeição entre o eleitorado carioca. A partir deste
problema do PMDB, que ficou fora do segundo turno, restou o Crivella. Ele
costuma chegar ao segundo turno, sempre teve cerca de um terço do eleitorado, e
esta já foi sua quarta tentativa de
chegar ao Executivo. E para disputar com ele na reta final foi um candidato
da esquerda, em um momento em que a esquerda está em declínio no país. Marcelo Freixo é muito associado ao
discurso contra o impeachment de Dilma Rousseff, e o PSOL é frágil como
partido político. Além disso, o
eleitorado do Freixo é muito limitado, tem um perfil de classe média, formação
superior, etc. Mas sem bases nas periferias.
Então
o que favoreceu a eleição do Crivella,
antes de se pensar em seus méritos, foi
a ausência de um concorrente com grande viabilidade eleitoral. Quanto ao
voto evangélico, no Rio, mais de 90% dos pentecostais apoiaram o Crivella. Mas
como ele tinha uma margem grande de diferença com relação ao Freixo, ele não
ganhou particularmente por conta deste eleitorado apenas.
O
Crivella tentou se distanciar da Igreja Universal, da qual é bispo licenciado.
Isso ajudou?
Ricardo Mariano: Até o segundo turno ele
tinha um perfil mais de centro, moderado. Ele sempre faz uma tentativa de
dissociar sua imagem da Igreja Universal. Ele deixa claro que é evangélico, mas
que está licenciado e que irá governar para todos. O Crivella até tentou forçar uma aproximação com a Igreja Católica, e
adotou um discurso de que respeitaria todos, não perseguiria umbandistas nem
adeptos do candomblé. Esse esforço diz respeito ao fato de que ele está
vinculado a uma minoria religiosa, como John Kennedy nos Estados Unidos dos
anos 60, que era identificado com a minoria católica do país. A Marina Silva,
idem. Para enfrentar esse obstáculo ele insistiu no caráter laico do Estado
brasileiro, lançando mão de um discurso defensivo, que é parte da estratégia
eleitoral do candidato evangélico.
Por
que em São Paulo essa estratégia do PRB não deu certo com o Celso Russomanno?
Ricardo Mariano: São diferenças do cenário
político local. O Crivella tem uma longa história de disputas na cidade. Ele
sempre disputou o governo do Estado e o município, além de ser senador eleito
pelo Rio. Já o Russomanno estava enfrentando candidatos de grande recall na
cidade, como as ex-prefeitas Marta Suplicy (PMDB) e Luiza Erundina (PSOL), além
do atual prefeito Fernando Haddad (PT), e o João Doria (PSDB). O Doria contou
com o apoio do governador Geraldo Alckmin, que em São Paulo é um cabo eleitoral
fortíssimo. E o candidato tucano
representava a centro direita, o mesmo segmento ideológico que Russomanno, logo
ambos disputavam o mesmo eleitor. Só que a candidatura do Doria era muito
mais encorpada, contava com mais partidos no arco de aliança, o que ajudou a
desidratar Russomanno. Se não houvesse o
Doria, a probabilidade de que ele fosse para o segundo turno seria enorme.
Esse
processo do crescimento dos partidos e da bancada evangélica começou quando?
Ricardo Mariano: Os evangélicos fazem parte
do cenário político há 30 anos, não começou ontem. Essa participação na esfera
pública não começou agora com a eleição do Crivella. É importante deixar claro
que os governos de esquerda, de Lula e
Dilma, fizeram muitos acenos a esse segmento. Eles prometiam aos evangélicos o aumento das parcerias do Estado com as
igrejas em troca de apoio parlamentar e votos. A ocupação evangélica de
espaços na implementação de políticas públicas é recente. A esquerda abriu muito esse espaço e legitimou essa participação,
principalmente na área da Saúde que trabalha com recuperação de usuários de
drogas. Vale lembrar que essas parcerias
já existiam com a Igreja Católica.
Essa
ampliação de parcerias é positiva?
Ricardo Mariano: Quando essas parcerias se
tornam problemáticas do ponto de vista da laicidade do Estado? É quando esses grupos religiosos pegam
recursos públicos e implementam políticas fazendo proselitismo. Em muitos
casos é um recurso público sendo instrumentalizado para fins religiosos. É o caso específico dessas igrejas
envolvidas em tratamento de usuários de drogas. Muitas vezes ao invés de
recorrer a profissionais, psicólogos, assistentes sociais etc., eles adotam discursos religiosos, técnicas
religiosas de tratamento, voltadas para atrair o paciente para sua denominação,
sua igreja. Isso atenta contra a laicidade do Estado.
Acha
que o governo de Crivella à frente da prefeitura do Rio vai privilegiar
evangélicos?
Ricardo Mariano: É provável que a prefeitura
conduzida pelo Crivella vá facilitar alguns pontos para as igrejas evangélicas.
Seja a lei do PSIU [que exige
silêncio nos estabelecimentos e igrejas após determinada hora], seja o código de edificações... As igrejas querem atropelar o código e
construir mais do que podem, visando ampliar seus templos. Isso tem
impactos profundos no trânsito e no espaço público da cidade. A prefeitura
tende a facilitar esses tramites legais com a regularização dos terrenos e a
flexibilização da legislação. Além disso, Crivella
deve ampliar as parcerias com as igrejas já firmadas pelo Eduardo Paes,
oferecer mais recursos para elas.
Em
que medida as ligações entre o PRB, Igreja Universal e rede Record favorecem os
candidatos da legenda?
Ricardo Mariano: É difícil separar a Igreja
Universal do PRB e das empresas de mídia, é muito difícil traçar uma fronteira.
O PRB foi criado pela Universal em 2005.
A Rede Record foi comprada pela igreja
em 1989, e reforça seus interesses. No telejornalismo
da emissora, por exemplo, a Universal é sempre beneficiada. Além disso ela
própria ocupa boa parte da programação, com seus bispos e pastores. E parte do
setor de criação ficcional da Record também atua a reboque da mensagem da
Igreja, com novelas bíblicas. Por outro lado, a Universal paga valores muito acima do mercado para comprar horários
na Record, principalmente na faixa da madrugada, eles injetam muito dinheiro lá
dentro. E eles apostam em candidatos-celebridade, alguns com programas na
grade da emissora, como Celso Russomanno. Então são coisas que se
retroalimentam.
Esse
conglomerado político-midiático-religioso representado por PRB, Record e
Universal é uma ameaça à democracia?
Ricardo Mariano: Eu não tenho como avaliar se
é ameaça à democracia, pois seria um julgamento político. Mas o que vem acontecendo até agora é que eles tentam, com determinadas
pautas e ao defender sua liberdade religiosa, se opor a projetos de lei de viés
liberal. Na prática eles tentam assegurar que o Estado continue
discriminando minorias sexuais, por exemplo. É uma pauta de autodefesa de seus
valores, mas que implica a proposição da discriminação estatal a determinados
grupos sociais. E isso atenta contra princípios claros da democracia, de
direitos iguais.
Como
é a relação das diferentes denominações evangélicas na política e na religião?
Ricardo Mariano: Em princípio elas são
concorrentes no campo religioso. No
próprio meio evangélico a Universal é muito controversa. Mas são
corporativistas. Quando têm inimigos em comum, como feministas ou LGBTs,
elas se unem. A Frente Parlamentar
Evangélica se une no Congresso, e por vezes se aliam com os católicos
também, contra parlamentares, bandeiras e pautas que os desagradam.
Os
interesses materiais, institucionais, ou algumas pautas morais, como aborto,
provocam uma reação em grupo dos evangélicos: quando eles têm adversários seculares, eles se unem. Mas em muitas
questões não. Uma parte dessa bancada evangélica é governista, e outra parte
está na oposição. Os políticos
evangélicos estão pulverizados em várias legendas diferentes, e é muito comum
lançarem candidaturas concorrentes. O fato de haver um candidato evangélico
ao Executivo não quer dizer que ele receberá o apoio de todas as lideranças
evangélicas.
O
Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, apoiou o Crivella, apesar de ser crítico
da Universal. Como você avalia esse apoio?
Ricardo Mariano: O Silas Malafaia é um adversário
do Edir Macedo, da Universal. E por
isso ele se tornou aliado da Rede Globo, que disputa com a Rede Record.
Quando a Globo percebeu um evangélico com grande visibilidade pública que não
era da Universal, se aproximou dele e abriu espaço para a cobertura de seus
eventos, como a Marcha para Jesus. E
por sua vez o Malafaia virou uma
metralhadora ambulante contra a Universal. Mas nesse momento na eleição do Rio ele não tinha como se aliar ao Freixo.
O psolista defende tudo o que o Malafaia abomina, as pautas políticas dos dois
são muito distintas, o Freixo é a favor de minorias, adoção LGBT, tudo isso. E
é importante lembrar que o PSOL é um dos
principais adversários da Frente Parlamentar Evangélica no Congresso.
O
que diferencia a estratégia do PRB da estratégia de outros partidos
evangélicos, como o PSC, do pastor Marco Feliciano e de Jair Bolsonaro?
Ricardo Mariano: O PRB está tentando ampliar
seu leque de aliados e alianças no espectro do centro partidário, que concentra
a maior parte do eleitorado. Nos últimos anos o PRB não está vinculado
exclusivamente no campo evangélico, e nem se restringe apenas à Universal. O projeto de poder do PRB é muito mais
amplo do que o PSC. Ele quer a presidência e governos do Estado, é um partido que pensa grande. Por isso
entendem que não podem se alinhar seja à extrema esquerda ou à extrema direita.
Ele quer o centro. Já o PSC é um partido que se transformou num partido de extrema-direita com a
família Bolsonaro, e em 2014 com o pastor Everaldo. Ele está à direita do PRB.
E isso cobrou um preço do PSC: em 2014 a legenda elegeu menos candidatos que em
2010.
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