Brasil: agora, mais do que nunca, precisaremos da política

Balanço das Eleições 2016

Leonardo Sakamoto*

Com os resultados do segundo turno das eleições, pode-se dizer que a esquerda foi abandonada pela periferia das duas maiores cidades do país 

Como dizia um sábio professor, o pós-eleição é o momento em que nós jornalistas de política e sociedade matamos nossa inveja dos colegas que cobrem esporte e organizamos nossos bate-bolas, fazendo contextualizações, análises e previsões. Nós sabemos e vocês também sabem que o Brasil não respeita previsões e, portanto, boa parte disso será letra morta em breve.

Tendo isso em vista, faço algumas considerações sobre os resultados deste segundo turno sob a ótica da esquerda:

1) O PT foi (mesmo) o grande derrotado das eleições municipais, como era de se esperar após a Operação Lava Jato, o impeachment de Dilma, o noticiário amplamente desfavorável e, principalmente, a crise econômica e o aumento do desemprego. Não há resquício de esperança para se agarrar. Se o partido não cair na real, parar de culpar os outros e fazer a autocrítica, não voltará a disputar a narrativa.

2) Certamente, houve uma onda conservadora, como já tratei no post sobre os resultados do primeiro turno. Mas não afirmaria que o país deu uma guinada para a direita, uma vez que nunca conseguiu-se implementar por aqui um projeto social, econômico e político de esquerda. Apenas aproximações bem questionáveis. O originalmente trabalhista PT aliou-se a coisas mais estranhas que ele em nome da governabilidade. Reforma agrária, reforma tributária democrática, reforma política, reforma urbana, garantia de direitos humanos? Ninguém sabe, ninguém viu. [Foi nisto tudo que o PT deixou todos os seus eleitores e simpatizantes decepcionados!]

3) Interessante como mesmo políticos de esquerda que sempre tiveram um posicionamento crítico ao modelo de desenvolvimento do PT foram colocados no mesmo saco e punidos pelo eleitor. Sim, boa parte da esquerda foi levada junto para o buraco, mesmo que tenha reclamado do governo Dilma o tempo inteiro. Um exemplo disso é Crivella, que foi ministro dela e membro de sua base de sustentação durante um bom tempo. Ele não foi tão identificado com ela quanto Freixo foi – apesar do PSOL ter se posicionado contra o governo do PT.

4) Com Marcelo “Universal” Crivella, o neopentecostalismo televisivo dá um salto para a implementação de seu projeto de poder. Desconfio que o Brasil terá um presidente assumidamente evangélico neopentecostal antes de ter um presidente assumidamente ateu. Para isso, certamente acabará se distanciando de extremistas, como Silas Malafaia – que surtou, no Twitter, na noite deste domingo, xingando a Globo, a Veja, o PT, o PSOL, Freixo, a esquerda, e bradando ''Chora Capeta'' – assim, sem vírgula separando o vocativo. [Nós, católicos, precisamos “acordar” e iniciarmos uma autêntica e eficiente Pastoral Política, do contrário, contaremos cada vez menos no cenário político brasileiro!]

5) Marcelo Freixo teve 1.163.662 votos no Rio de Janeiro, maior do que sua última votação para prefeito em 2012. Considerando que sua campanha foi feita com poucos recursos financeiros e sem máquina partidária, isso é um feito considerável. Por isso, não acho que ele sai derrotado. Pelo contrário, Freixo se cacifa como uma das lideranças políticas da esquerda nesse momento em que o campo progressista terá que se reinventar.

6) Com os resultados do segundo turno das eleições, pode-se dizer que a esquerda foi abandonada pela periferia das duas maiores cidades do país. De certa forma, o cenário lembrou as votações majoritárias do PT durante a década de 90. Vale lembrar que o partido levou anos, em um lento trabalho de base, com uma militância engajada, para que a periferia ''comprasse'' a sua narrativa. Claro que a periferia que votou em Lula em 2002 também estava cansada da crise do segundo governo FHC e queria mudança. Mas depois ficou ao lado do partido por conta do crescimento econômico, do aumento do salário mínimo, da diminuição da fome, do Bolsa Família e da melhoria na qualidade de vida. Quando o cenário muda, alterado pela crise econômica, da qual o PT tem culpa, o povão procura outra saída.

7) E vendo a estratificação dos bairros em que Freixo e Haddad foram os mais votados, a esquerda vai ter que suar – e muito – para reencontrar-se com o discurso de mudança, saber disputar o simbólico e reconquistar a periferia. Haddad foi melhor votado, em porcentagem, em Pinheiros – bairro onde se reúne boa parte da esquerda classe média alta paulistana, cercada de um lado pela PUC-SP e pelo outro pelo campus da USP. Há alguns anos, o centro de São Paulo era do PSDB e todo o gigante entorno populacional era PT. Enquanto isso, Freixo levou os bairros mais próximos do Centro e Crivella ficou com a maior parte da periferia.

Em Belém, Edmilson (PSOL), que teve 47,67% contra os 52,33% de Zenaldo Coutinho, ao contrário, tem entrada forte na periferia. Já foi prefeito, tem recall, estabelece um diálogo. Resta saber se a Justiça Eleitoral irá cassar a candidatura do vencedor por uso da máquina, como se discutia durante a campanha.

8) É cedo para decretar a morte do PT. Os eleitores mandaram um recado através do voto. Parte da esquerda foi desalojada das Prefeituras e realocada nos parlamentos municipais para cumprir o papel de oposição. Parte, desalojada também das Câmaras de Vereadores, deverá ir para as ruas, de onde saiu na década de 80. De um ponto de vista muito otimista, o retorno às ruas pode levar o PT e os movimentos sociais a ele relacionados fazerem sua autocrítica. Isso será um processo bem doloroso e longo, em que os diferentes grupos e movimentos da esquerda irão bater bastante cabeça entre si, como foi na década de 70 durante a ditadura. Aliás, isso acontece nesta noite, com gente do PT e do PSOL quebrando o pau nas redes sociais. Particularmente, não acredito que parte da esquerda conseguirá fazer essa autocrítica. Mas isso já é outra história.

9) Em Fortaleza, o candidato de Ciro e Cid Gomes, Roberto Cláudio (PDT), foi reeleito. Não sei se isso fortalece as pretensões presidenciais de Ciro, mas, ao menos, não as derruba antecipadamente. Clécio Luís (Rede) também foi reeleito prefeito de Macapá (AP) – isso não ajuda muito as pretensões de Marina Silva, que segue não imprimindo uma marca ao partido. O governador Flávio Dino (PC do B), cujo partido havia eleito muitos prefeitos no primeiro turno no Maranhão, viu o candidato em quem declarou voto (Edivaldo Holanda Jr) vencer a capital São Luís. Apesar, é claro, do outro candidato, Eduardo Braide, também ter disputado o apoio de Dino. Seu correligionário Edvaldo Nogueira venceu em Aracaju (SE). Isso pode mexer com a correlação de forças entre PT e PC do B. Será que chegou a hora dos comunistas saírem da órbita do partido do ABC e exigir o protagonismo dessa dupla?

10) O PSDB cresceu significativamente. Mas um rosário de partidos menores conquistou importantes cidades e capitais. Não é possível saber o que o fortalecimento de siglas menores fará com o já fragmentado Congresso Nacional. Mas ainda acho que não há um grande vencedor nestas eleições. Como já escrevi aqui, a classe política é responsável pela situação a que chegamos, com toda a corrupção, incompetência e ignorância que minou a credibilidade de instituições. Compra da Reeleição, Mensalões, Trensalões, Lavas-Jato e a maioria dos escândalos, que permanece longe dos olhos do grande público. A democracia representativa tradicional e seus vícios se mostraram insuficientes para as demandas da população.
Leonardo Sakamoto
Autor deste artigo

Ao mesmo tempo, políticos, mídia, empresários e parte da sociedade conseguiram a proeza de dar espaço aos que defendem que “fazer política é escroto”. Ou seja, ao invés de tentarmos melhorar a política, reinventar a democracia, a saída é negar tudo o que ela representa e buscar saídas rápidas, vazias e, não raro, autoritárias. Daí, surgiram candidatos que estufaram o peito e mentiram, com orgulho, que não são políticos e não fazem política. Isso abre portas para que pessoas que se colocam como “salvadores da pátria” ganhem espaço a fim de nos “tirar das trevas” sem o empecilho da “política”.

E é neste momento, como nunca, que precisaremos da política.

* LEONARDO SAKAMOTO é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.

Fonte: Blog do Sakamoto  – Domingo, 30 de outubro de 2016 – 22h44 (Horário de Brasília – DF] – Internet: clique aqui.

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