Só a misericórdia é infalível
Andrea Grillo[1]
Settimana
News
22-11-2016
A “rendição à misericórdia”, que é o sal do Evangelho,
não é menos desafiadora. Não é rendição ao mundo, mas rendição a Deus que salva
o mundo, que é apaixonado pelo ser humano, que não se cansa de ficar ao seu
lado
PAPA FRANCISCO |
O
porte das questões levantadas pelo magistério pastoral do Papa Francisco foi
lucidamente fotografada pelas palavras do Pe.
Ghislain Lafont [clique aqui para ler o artigo desse teólogo]. Sabemos bem como ele sabe ir fundo nas
questões, de um modo tão direto, simples e clarividente.
Parece-me
que o primeiro ponto sobre o qual é justo se deter é a compreensão do porte “amplo” e “geral” das questões levantadas pela Amoris laetitia[2]. A reação é muito mais dura, sobre o tema
matrimonial, do que a que se refere aos temas políticos ou culturais. Não é por
acaso que isso acontece justamente neste campo moral e institucional.
A
tradição eclesial, de fato, mudou de registro em relação aos estilos do século
XIX, em quase todos os outros “campos”, há muito tempo: sobre os temas da
liberdade, do compromisso político, da forma do ministério, da celebração ritual,
passos notáveis foram dados.
Mas o matrimônio – junto com o tema da
família e do amor – ainda é considerado
como um âmbito no qual a defesa do Evangelho e da sociedade fechada tendem a se
identificar. Falar de “misericórdia” é
percebido, imediatamente, como um “cedimento ao moderno” e como “traição do
Evangelho”.
Observo
que não se fez isso em tantos outros campos: o contrato de “seguro” [de automóveis, imóveis etc.], por exemplo, tinha sido lido, inicialmente, como
“negação da Providência”..., mas,
hoje, qual cardeal falaria contra o seguro obrigatório dos automóveis,
percebendo-o como “infração” de um direito de Deus ao exercício da Providência?
GHISLAIN LAFONT Nasceu em 1928, na França, é teólogo e monge beneditino |
Uma
questão de “teologia fundamental”
No
seu texto, de modo pertinente, Lafont
disse que, talvez, devêssemos pensar no debate em torno da Amoris laetitia como uma questão de “teologia fundamental”, que nos convida a pensar de modo mais
adequado a relação entre misericórdia e verdade, entre graça e infalibilidade.
Trata-se
de uma sugestão preciosa: tudo o que o Papa Francisco fez nesses quase quatro
anos manifesta essa “visão abrangente”, que vem de longe e que é possível
encontrar com muita clareza no pensamento e nos atos do Papa João XXIII.
A ideia de um “Concílio”
como “ato de misericórdia” introduz na Igreja do século XX uma nova possibilidade de
relação com a própria tradição e com o mundo moderno. A “misericórdia” como “forma da Igreja” – de acordo com a bela
imagem que Stella Morra introduziu no seu livro Dio non si stanca. La misericordia come forma ecclesiale [trad.: Deus
não se cansa. A misericórdia como forma eclesial] – se torna o critério para interpretar as suas relações ad intra [em seu próprio interior] e as suas relações ad extra [com o mundo exterior].
Anunciar uma “comunhão mais vasta” no campo matrimonial e uma “comunhão mais vasta no campo ecumênico” – essas são as duas
profecias principais dos últimos meses de pontificado, percebidos como vulnera[3] por parte dos setores mais rígidos da Igreja –
responde perfeitamente a esse desígnio de 60 anos atrás, que tomou forma no
Concílio Vaticano II e que, hoje, encontra em Francisco um intérprete tão
determinado quanto inesperado, embora não desprovido de “pressentimento” no
corpo eclesial.
Com
efeito, trata-se de uma grande “mudança
de paradigma” em relação à configuração eclesial do século XIX e da primeira
metade do século XX.
Página de rosto da edição em latim do Código de Direito Canônico de 1917 |
O
fim de um desvio autoritário, também na teologia
Com
efeito, todos nós, cristãos católicos,
somos filhos de um “desvio autoritário”
que o pensamento e a práxis católica elaborou – não sem resistências – a partir
do início do século XIX e que encontrou no Código
de Direito Canônico de 1917 uma figura sintética bastante poderosa dele. Aquilo que hoje não funciona mais, depois
de um século exatamente, não é a presença de uma “lei canônica”, mas a sua
forma de código.
A codificação “modernizou a
Igreja”, mas subtraiu dela elasticidade, discernimento, discrição, movimento. Há um efeito paralisante,
que, à época, respondia bem aos medos antimodernistas, mas que hoje é
contraproducente. E é interessante notar
como se combateu o modernismo com o seu próprio método: com a introdução de uma
“autoridade central” mediada por leis universais e abstratas.
Napoleão
é o mito escondido e insidioso da paralisia normativa na Igreja Católica do
último século. E muitos canonistas não
se dão conta, hoje, de que pensam como “funcionários napoleônicos” e não como
“ministros da Igreja”.
Essa,
no entanto, não é apenas uma questão de “marco institucional”, mas também de
“teologia fundamental”. Uma Igreja que pensa a relação com a verdade e com a
justiça em termos de “infalibilidade” e de “normas universais e abstratas”
projeta sobre a tradição um ideal modernista sem se dar conta disso e não
consegue mais mediar entre dogma e história. Permanece prisioneira dos esquemas
modernistas que assumiu inconscientemente. E dos quais nos liberta a mens[4] de João
XXIII, Paulo VI e Francisco. [Dogmatiza-se
não a verdade que se quer manifestar, mas a formulação,
a apresentação, o meio usado para comunicá-la!]
A
aposta de João XXIII e de Francisco
A continuidade em relação a
João XXIII e, em parte, a Paulo VI – e a descontinuidade em relação a João Paulo II e
a Bento XVI – é, ao menos sob esse perfil, um
dado de extrema relevância. E tem, como primeira consequência, um “trabalho
sobre a linguagem” absolutamente primário.
Tanto
João XXIII quanto Francisco serviam e servem a tradição “com outras palavras”. O primeiro trabalho teológico é hoje uma
reformulação, uma tradução da tradição. E é normal que a primeira reação,
diante das linguagens novas, seja de admiração e até mesmo de desconcerto. Resistência e rendição se manifestam, como
sempre.
Mas,
há 60 anos, entendemos, cada vez melhor, que a defesa do Evangelho, quando se identifica como “resistência ao
mundo”, perde a si mesma e se perverte. A “rendição à misericórdia”, que é
o sal do Evangelho, não é menos desafiadora. Não é rendição ao mundo, mas
rendição a Deus que salva o mundo, que é apaixonado pelo ser humano, que não se
cansa de ficar ao seu lado.
E, quando o ser humano sabe se render [entregar-se] ao Deus que se fez homem, a realidade se
complica e se torna maravilhosa. Isso acontece hoje no campo ecumênico e no
campo matrimonial, no campo ecológico e no campo formativo: a forma da Igreja está mudando, para que o
Evangelho possa ser compreendida mais a fundo.
ANDREA GRILLO Autor deste artigo |
N O T A S
[ 1 ] ANDREA GRILLO é teólogo italiano,
leigo, especialista em liturgia e pastoral. Doutor em Teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de
Pádua, é professor do Pontifício Ateneu
Santo Anselmo, de Roma, do Instituto
Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto
de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua. Também é membro
da Associação Teológica Italiana e da Associação dos Professores de Liturgia da
Itália. É autor de uma extensa bibliografia, alguns de seus livros em italiano
podem ser conhecidos clicando aqui.
[ 2 ] Amoris laetitia (tradução: "Alegria do Amor") é uma exortação
apostólica do Papa Francisco, publicada em 8 de abril de 2016. Possui nove
capítulos e tem como base os resultados de dois Sínodos dos Bispos sobre a
Família ocorridos em 2014 e 2015. A exortação merece destaque devido à
possibilidade concedida a divorciados que estão em segunda união de receber a
comunhão, serem padrinhos e ensinarem a catequese da Igreja Católica. Não se
trata de uma regra geral, mas da possibilidade
da permissão a critério dos respectivos confessores, após um caminho sério
de discernimento. Para lê-la, baixá-la e
imprimi-la, clique aqui. Aqueles que preferirem, podem adquiri-la em formato impresso nas livrarias católicas.
[ 3 ] Vulnera é um vocábulo latino que significa “feridas”,
portanto, sinônimo de algo nocivo, que enfraquece o corpo da Igreja Católica.
[ 4 ] Mens, outro vocábulo latino que significa “mente”,
em sentido mais amplo, o pensamento,
a mentalidade.
Traduzido
do italiano por Moisés Sbardelotto. Para
acessar a versão original deste artigo, clique aqui.
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