Compreendendo melhor a última carta do Papa

Heidi Schlumpf
Colunista do National Catholic Reporter
CNN

Papa Francisco fala menos de aborto e mais de pobreza no mundo atual,
ele está preocupado com a falta de misericórdia para
com os marginalizados do mundo 
PAPA FRANCISCO
Assina a sua mais recente Carta Apostólica "Misericordia et misera"
Vaticano, domingo, 20 de novembro de 2016
Conclusão do Ano Jubilar da Misericórdia
A decisão do Papa Francisco de dar aos padres o poder de perdoar o aborto na confissão não terá virtualmente efeito algum para os católicos estadunidenses. No entanto, dado que os católicos votaram no Partido Republicano nas recentes eleições presidenciais, este gesto de um papa que instou por misericórdia para com os refugiados e os pobres poderia ser interpretado como se dissesse que o aborto, ainda que continue sendo um problema muito grave, não é o único assunto que deveria interessar aos católicos.

Este movimento estratégico papal não muda a doutrina acerca do caráter pecaminoso do aborto. Só altera a prática pastoral em algumas partes do mundo sobre o modo como pode ser perdoado. Inicialmente, prevista para ser aplicada durante o ano especial do Jubileu da Misericórdia, que terminou no domingo, a prática foi estendida de forma indefinida.

A verdade é que quase todos os sacerdotes estadunidenses e canadenses já tinham autoridade para retirar a excomunhão causada pelo aborto, segundo um porta-voz da Conferência Episcopal Estadunidense, que esclareceu essa política quando o Papa a anunciou pela primeira vez, em setembro.

Os sacerdotes estarão em capacidade de “absolver aqueles que cometeram o pecado do aborto”, assinala o Pontífice em uma carta publicada pelo Vaticano, na segunda-feira, e denominada Misericordia et Misera. “A medida que tomei quanto a este assunto, limitada à duração do Extraordinário Ano Santo, foi estendida, sem prejuízo do contrário”.

Sendo conscientes da ênfase do Papa em que a Igreja é uma instituição de misericórdia, esta ampliação aos sacerdotes, em nível mundial, pode certamente afetar a capacidade de alguns católicos de receber os sacramentos e se reconciliar com a Igreja. Também pode ocorrer que a Igreja se veja mais aberta e tolerante, especialmente em culturas onde enfrenta a “concorrência” de outros credos que podem ser percebidos como mais acolhedores.

Esta decisão também pode se relacionar com a possibilidade de divorciados e casados em segunda união se reconciliar com a Igreja, através do “foro interno” em confissão, em contraposição ao longo processo de anulação.

Mas penso que o anúncio, embora certamente programado para o encerramento do Ano Jubilar e não para as eleições presidenciais dos Estados Unidos, quando combinado com outras declarações do Papa Francisco, poderia ser lido como o pontífice refletindo sobre a decisão de alguns católicos de votar em Donald Trump. Enquanto católicos norte-americanos que votam nos republicanos tendem a citar crenças antiabortivas, é interessante que este Papa parece falar menos sobre o aborto do que sobre a pobreza.

Antes da eleição, em uma viagem de avião para casa retornando de uma visita ao México em fevereiro, o Papa respondeu a uma pergunta sobre a alegação de Trump que a escolha do Papa para celebrar a missa em Ciudad Juarez, perto da fronteira fez dele "um peão político do Estado mexicano" Dizendo: "... uma pessoa que só pensa em construir muros, seja onde for, e não em construir pontes, não é cristã. Isto não está no evangelho."

Contudo, o Papa claramente se desviou do debate eleitoral estadunidense, afirmando que deixaria o julgamento e a decisão “ao povo”.

Durante a campanha, assim como foi durante seu pontificado, o Papa Francisco enfatizou a necessidade de agir diante das necessidades dos pobres e refugiados. A apenas três dias das eleições estadunidenses, o Pontífice incentivou os ativistas sociais a não se renderem à política do medo. Na véspera da eleição, disse a um jornalista que “não emito juízos sobre pessoas ou homens da política”, mas o que “quero entender é o tipo de sofrimento que seu comportamento causa aos pobres e excluídos”.

Na semana passada, depois que as pesquisas de boca de urna indicaram que 52% dos católicos escolheram Trump sobre 45% que favoreceram Hillary Clinton, o Papa pareceu advertir sobre a ascensão do nacionalismo populista ao redor do mundo, enfatizando o perigo de uma “epidemia de animosidade” contra aqueles que têm uma raça ou um credo diferente.
HEIDI SCHLUMPF
Autora deste artigo

Meu palpite é que o Papa está preocupado com a falta de misericórdia para com os marginalizados do mundo, não só nos Estados Unidos. “Este é o tempo da misericórdia”, escreve. “É o tempo da misericórdia para todos e cada um, já que ninguém pode pensar que é alheio à proximidade de Deus e à força de seu carinhoso amor. É o tempo da misericórdia porque os fracos e os vulneráveis, os distantes e os solitários, devem sentir a presença de irmãos e irmãs que os ajudam em suas necessidades. É o tempo da misericórdia porque os pobres devem sentir que são estimados com respeito e interesse pelos que derrotaram a indiferença e descobriram o essencial da vida”.

É claro, a carta do Papa sobre a misericórdia foi certamente preparada antes dos resultados das eleições estadunidenses. Também deveria ser levado em consideração que estende o poder de perdoar no confessionário ao tradicionalista e cismático grupo da Sociedade de São Pio X, razão pela qual não pode ser lida como qualquer tipo de avanço do “liberalismo” na Igreja.

Mesmo assim, vistas em conjunto, as palavras e ações do Papa certamente podem dar muito o que pensar aos católicos estadunidenses. [E também do resto do mundo]

Traduzido do inglês pelo Cepat, com correções e adaptações feitas por Telmo José Amaral de Figueiredo. Acesse a versão original deste artigo, clicando aqui.

“O pecado permanece, mas a dor das
mulheres é acolhida”

Entrevista com Lucetta Scaraffia
Historiadora e coordenadora do caderno mensal Chiesa Donne Mondo do jornal L'Osservatore Romano – Vaticano

Paolo Conti
Jornal “Corriere della Sera” – Milão (Itália)
22-11-2016 
LUCETTA SCARAFFIA
"A nova norma sobre o aborto contém um reconhecimento implícito do sofrimento que cada mulher sente depois da experiência de um aborto. A expiação, sugere Francisco, já começou nelas mesmas com a dor que sentem." Essa é a opinião de Lucetta Scaraffia.

Eis a entrevista.

O que você pensa da decisão do Papa Francisco? O aborto era ou não um dos pecados mais graves segundo a Igreja Católica?

Lucetta Scaraffia: Atenção. Esclareçamos logo um ponto. O pecado permanece. O Papa Francisco falou dele continuamente, em termos muito severos e em várias ocasiões. Mas o pontífice distingue entre o pecado, em relação ao qual continua sendo muito duro, e o pecador, que tem a possibilidade de mudar de vida. A nova norma contém um reconhecimento implícito do sofrimento que cada mulher sente depois da experiência de um aborto. A expiação, sugere Francisco, já começou nelas mesmas com a dor que sentem.

Mas essa decisão de conceder que todos os sacerdotes absolvam o pecado do aborto não corre o risco de “rebaixá-lo” aos olhos dos fiéis?

Lucetta Scaraffia: Absolutamente não. Qualquer mulher que tenha abortado sabe como é dramático o peso que se carrega dentro: a ferida permanece sempre, profunda e grave. Ou seja, assegura-se a possibilidade de entrar em uma igreja, talvez em um ímpeto repentino e com base em um forte impulso interior, e poder se confessar recorrendo ao perdão e à misericórdia. Cancela-se aquele mecanismo talvez muito burocrático que confiava apenas aos bispos, e a alguns sacerdotes autorizados, a faculdade de absolver o pecado do aborto. E, depois, como explicou o Papa Francisco no início do Jubileu extraordinário, muitas mulheres escolheram abortar enganadas por uma cultura difusa que transformou esse gesto em um simples direito, em um gesto quase normal. O Papa Francisco decidiu não fechar outras portas, não levantar outras barreiras, mas abrir à possibilidade de um perdão, de uma reconciliação.

Você acha que esse gesto contém uma “consciência especial” do papa em relação à dor das mulheres que abortaram?

Lucetta Scaraffia: Seguramente sim. A decisão do pontífice é uma forte demonstração do conhecimento de um drama que afeta não só as mulheres, mas também muitos médicos, que, por sua vez, têm problemas muito graves. Outro aspecto deve ser enfatizado: a mulher deixa de ser considerada como a “grande pecadora” de acordo com uma certa tradição.

A decisão de Papa Bergoglio pode mudar a percepção da fé católica?

Lucetta Scaraffia: Não há dúvida. Assim como está acontecendo para os casais separados e os divorciados recasados, a Igreja se coloca como uma instituição materna que acolhe os pecadores sobreviventes de tantos sofrimentos, e não como uma agência dispensadora de normas.

Mas o clero italiano, geralmente muito idoso e nem sempre pronto às mudanças, será capaz de elaborar uma novidade tão relevante?

Lucetta Scaraffia: Eu espero que sim. Ele deverá enfrentar essa nova realidade. Não se pode ir contra uma decisão do papa.

Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. Para acessar a versão original desta entrevista, clique aqui.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quinta-feira, 24 de novembro de 2016 – Internet: clique aqui; e aqui

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