Qual será o amanhã da humanidade?

“Homo Deus”,
do historiador israelense Yuval Noah Harari,
é um livro surpreendente

Hélio Schwartsman

Curiosamente, Harari consegue ser, ao mesmo tempo, utópico e distópico
YUVAL NOAH HARARI

"Homo Deus", do historiador israelense Yuval Noah Harari, é um livro surpreendente desde o subtítulo: uma breve história do amanhã. Num mundo onde até o passado é incerto, é arriscado fazer previsões sobre o futuro.

O histórico de acertos dos profetas, sejam eles utópicos [1], distópicos [2] ou preocupados apenas com a tecnologia, também recomenda ceticismo. Não vivemos no paraíso socialista, nem sob o tacão do Big Brother e ainda estou à espera de um carro aéreo como o dos Jetsons.

Harari tira isso de letra e ainda produz uma obra extremamente informativa, deliciosamente bem-escrita e que levanta alguns dos mais sérios problemas da humanidade para as próximas décadas. Tudo isso mobilizando conceitos de história, filosofia, biologia, psicologia etc. Curiosamente, Harari consegue ser, ao mesmo tempo, utópico e distópico.

O autor inicia a obra navegando sob o vento do otimismo. Fala como vencemos ou estamos perto de vencer as chagas que nos assombram: fome, doença e guerra.

"Pela primeira vez na história, mais pessoas morrem hoje por comer demais do que por comer de menos; mais pessoas morrem de velhice do que de doenças infecciosas; e mais pessoas cometem suicídio do que são mortas por soldados, terroristas e criminosos somados", escreve Harari.

É só a ponta do iceberg. A tecnologia não vai parar e, como uma espécie ambiciosa, nossos próximos alvos serão a imortalidade, a felicidade e a divindade.

Sim, parece exagerado, mas Harari, redefinindo um pouco esses termos, consegue mostrar de forma razoavelmente convincente um certo sentido neles. Não é impossível que desenvolvamos tecnologia para o homem viver até os 150 anos. Talvez sejamos capazes de fazer download de nossas consciências, a derrota da morte.

A felicidade é ainda mais fácil de atingir, seja por pílulas ou engenharia genética.

Quanto à divindade, nossa tecnologia atual já entrega muito mais do que os poderes atribuídos aos deuses pelos antigos, aí incluído Jeová [Javé] no Antigo Testamento. Os avanços que virão nos tornarão cada vez mais o Homo Deus, título do livro.

Mas o mundo nunca é tão simples. A partir deste ponto, Harari prepara sua guinada distópica.

Convém qualificar esse "distópico". O historiador não se considera um profeta. Pretende apenas apontar tendências. Paradoxalmente, quanto mais sucesso um autor como Harari tiver em mostrar problemas, de modo que se possa preveni-los, menos preciso o livro se torna.

Ciência e tecnologia correspondem a um modo de pensar. Nos últimos séculos, a ideologia que prosperou, à custa das velhas religiões, foi o humanismo liberal, a ideia de que a vida humana está acima de tudo e que são os valores que criamos que dão sentido à existência.

Harari aposta que o humanismo não resistirá ao avanço tecnológico. Ele será dinamitado, à medida que ficar mais claro que noções basilares para a ética humanista, como livre-arbítrio e autonomia, não são mais sólidas do que os deuses dos antigos.

Esses conceitos que fundam instituições como a democracia, o mercado, a Justiça, estão prestes a ser implodidos também pela popularização de programas de computador que nos conhecem melhor do que nós mesmos.

O robozinho da Amazon sabe bem os livros que eu gostarei e provavelmente comprarei. Logo saberá como reajo emocionalmente a cada passagem das obras. Inteligência e consciência já não são um par indissociável, e as máquinas estão ficando mais inteligentes do que o homem.

Esse é provavelmente o ponto mais fraco do livro. Não estou tão convencido de que o humanismo vá sucumbir ao dataísmo, possível religião do futuro na visão de Harari.

Ele parece menosprezar a incrível capacidade humana de acreditar no que bem deseja, apesar de evidências em contrário. A persistência das religiões e a eleição de Donald Trump são ótimos exemplos disso.

Há pontos em que ele chega a ser superficial. O estilo límpido de Harari, que torna a leitura fluida, esconde controvérsias e sutilezas argumentativas em torno desses complexos problemas.

O autor vai mais longe em seus cenários "distópicos". Para o autor, nós delegaremos voluntariamente aos computadores as decisões mais importantes sobre nossas vidas, porque eles o farão melhor do que nós. Isso talvez não seja um mal, mas é definitivamente um mundo pós-liberal.

A igualdade também poderá sofrer estresse. Harari vislumbra um cenário em que uma pequena elite terá recursos para adquirir melhoramentos genéticos e talvez a imortalidade, enquanto a grande massa de pessoas se contenta com muito menos.

Talvez consigam experimentar um pouco da felicidade em drogas, mas apenas se a elite não considerar que esses humanos, já não necessários para os processos produtivos e para a guerra, já perderam a razão de existir.

"Homo Deus" talvez peque pela hipérbole, mas é certamente uma obra que vale a pena ler.

NOTAS

[ 1 ] Utópico relativo à utopia. Utopia é qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições político-econômicas verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da coletividade (Fonte: Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, versão 3.0).

[ 2 ] Distópico é aquilo que apresenta uma distopia. Distopia é qualquer representação ou descrição de uma organização social futura caracterizada por condições de vida insuportáveis, com o objetivo de criticar tendências da sociedade atual, ou parodiar utopias, alertando para os seus perigos; é uma espécie de antiutopia. Famosas distopias foram concebidas por romancistas como George Orwell (1903-1950), com a obra “1984” (Companhia das Letras, 2009) e Aldous Huxley (1894-1963), com o livro “Admirável Mundo Novo” (Biblioteca Azul, selo da Ed. Globo, 2014). Fonte: Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, versão 3.0.

O LIVRO

TÍTULO: Homo Deus: uma breve história do amanhã
EDITORA: Companhia das Letras
AUTOR: Yuval Noah Harari
TRADUÇÃO: Paulo Geiger
PREÇO: R$ 54,90 (448 págs.)

Fonte: Folha de S. Paulo – Ciência / Crítica – Sábado, 12 de novembro de 2016 – 02h00 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui.

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