Alguns cardeais têm dúvidas sobre a Exortação Pós-Sinodal “Amoris Laetitia”
Cinco dúvidas, quatro cardeais, três certezas
Andrea Grillo*
Blog
“Come se non”
14 / 11
/ 2016
Ao invés de uma Igreja "de saída", missionária, que se arrisca neste
mundo, os cardeais que escreveram a carta ao Papa parecem
desejar uma Igreja enclausurada
mundo, os cardeais que escreveram a carta ao Papa parecem
desejar uma Igreja enclausurada
Uma
nova carta de quatro cardeais ao
Papa Francisco, levantando
"dúvidas" sobre a Amoris
laetitia.
Para o teólogo italiano
Andrea Grillo,
"os cardeais que sobem ao primeiro
andar se sentam na janela e tentam, de algum modo, fazer com que a Igreja em
saída volte a entrar, temem os hospitais de campanha, evitam os campos de
refugiados".
A
íntegra dessa carta dos quatro cardeais, sob o título Criar clareza: Alguns
nós por resolver em "Amoris laetitia" - Um apelo, em
português, pode ser lida clicando aqui.
WALTER BRANDMÜLLER Cardeal alemão, nascido em 1929 - foi presidente do Pontifício Comitê das Ciências Históricas |
Eis
o artigo:
Depois
daqueles escritos durante o Sínodo, mais ou menos clandestinamente, outra
carta, sempre com as assinaturas de costume, agora selecionadas [dos cardeais Walter Brandmüller, Raymond L. Burke, Carlo Caffarra e Joachim
Meisner]. Mas, desta vez, não são expressados temores ou desejos. Não, esta é uma lista de "dúvidas".
O interessante é que a
dúvida não é tanto sobre a Amoris
laetitia, mas sobre o desígnio do papa como tal. Mas o efeito, inesperado,
é que os quatro cardeais, formulando as
suas cinco dúvidas, fazem surgir no povo de Deus três grandes certezas. A
partir das suas cinco dúvidas, nascem as nossas três certezas.
A
dinâmica eclesial também reserva essas surpresas. Se homens da Igreja
experientes, depois de sete meses da apresentação do texto da Amoris laetitia, continuam "não
entendendo" – ou não querendo entender – o que mudou e se agarram obstinadamente às suas
"evidências suspeitas", tudo isso determina, no corpo eclesial , uma
nova consciência, tão radical que se torna certeza. A sua desconfiança em
relação à Amoris laetitia nos permite
uma nova confiança com o Evangelho. Isso também, de certo modo, é ministério
eclesial.
Certitudo prima – Primeira certeza
Na
Igreja Católica, por causa de um histórico fato complexo, mas do qual esses
Senhores Cardeais também deveriam ter se dado conta há muito tempo, pode acontecer que se fale uma linguagem
que não tenha mais nenhuma referência à realidade. Pode-se falar de sujeitos
casados perante a lei como se vivessem "more uxorio" [esposo e esposa] e de "atos intrinsecamente negativos" como se estivessem fora da
história.
Na raiz desse mal-estar,
está uma falta de reconhecimento da realidade e uma radical pretensão de autossuficiência. De nada vale a
experiência: aprenderam a se esconder
por trás da couraça de uma "ciência triste", identificada com o
Evangelho, e têm a atitude de "defensores do bem das almas". Mas se
perdeu o vínculo tanto com as almas quanto com o bem.
Certitudo altera – Outra certeza
Chegou o tempo em que é
preciso escolher entre iniciar processos
de conversão ou ocupar espaços de
poder.
A todo o custo, os quatro signatários consideram que, para um pastor e para um
homem da Igreja, não há alternativa. Ele só pode ocupar espaços de poder e
jogar bombas de gás lacrimogêneo para impedir a visão do real. E se usa de
todos os meios. Principalmente, pretende-se
que a Escritura e a Tradição estejam a serviço das operações de
"imunização do real" perseguidas ao longo dos últimos 40 anos. O
povo de Deus e o magistério eclesial olham para essas tentativas como se olha,
com a justa compreensão, para as crianças, que, privadas do seu brinquedo
preferido, batem os pés e pedem justiça.
Certitudo tertia – Terceira certeza
Há
já sete meses, iniciou-se o caminho de uma recepção rica e complexa da Amoris laetitia. Os pastores que trazem no coração o bem dos seus fiéis conhecem o
caminho, puseram-se a caminho: alguns na frente do povo, para incitar a
marcha; alguns no meio do povo, para manter o bom ritmo comum; alguns na
retaguarda, para proteger aqueles que tem o passo mais lento. Os pastores sabem onde ficar. Os
cardeais que sobem ao primeiro andar se sentam na janela e tentam, de algum
modo, fazer com que a Igreja em saída volte a entrar, temem os hospitais de
campanha, evitam os campos de refugiados. Sentam na janela e se dizem:
"Onde vamos acabar?". E a única resposta é: "É preciso acabar de
ir". Ficar. Parados. Surdos. Imunes. Distantes. Indiferentes. Com um
sentimento de infinita diferença do mundo estranho. Mas, acima de tudo, de Francisco, papa estranho. Que exala odor de vida. E que ousa não
subordinar o Evangelho à lei.
Francisco, a tartaruga de Aquiles e
os quatro cardeais
Andrea Grillo*
Blog
“Come se non”
15 / 11
/ 2016
Por trás das opiniões
expressadas na carta dos quatro cardeais sobre a Amoris
laetitia, não há apenas a longa
sombra de uma Igreja paralisada e engomada, mas também uma visão filosófica
estática, que nega o movimento e o devir. Eles defendem o ser cristão como
algo de estático, caindo ruidosamente nas contradições que Zenão de Eleia, defensor do ser parmenídico, já mostrava com
clareza em um famoso "paradoxo", denominado de "Aquiles e a tartaruga". Ouçamo-lo
em uma sintética apresentação:
"Aquiles,
símbolo de rapidez, deve alcançar a tartaruga, símbolo de lentidão. Aquiles
corre dez vezes mais rápido do que a tartaruga e lhe concede dez metros de
vantagem. Aquiles corre esses dez metros, e a tartaruga percorre um metro;
Aquiles percorre esse metro, a tartaruga percorre um decímetro; Aquiles
percorre esse decímetro, a tartaruga percorre um centímetro; Aquiles percorre
esse centímetro, a tartaruga percorre um milímetro; Aquiles percorre esse
milímetro, a tartaruga percorre um décimo de milímetro, e assim por diante, ad infinitum; de modo que Aquiles pode correr para sempre, sem
alcançá-la" (J. L. Borges).
JORGE LUIS BORGES Escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino que viveu de 1899 a 1986 |
Não
irá desagradar ao Papa Francisco se eu recordo essa mirabolante retomada do
famoso "paradoxo da tartaruga",
como escrita por Jorge Luis Borges,
o grande poeta argentino, em "Outras
inquisições", sob o título "Metamorfose
da tartaruga", onde, à sua maneira, ele percorre toda a história das
milhares de variações que esse famosíssimo paradoxo de Zenão assumiu na
história da nossa cultura. E Borges tira daí uma alta reflexão sobre o tema,
fundamental, do regressus in infinitum
como argumento filosófico.
Eu
pensei nesse belo trecho quando li o texto das cinco dubia [dúvidas] formuladas pelos quatro cardeais. Em todo o texto,
aparece de modo evidente uma dificuldade de fundo, que é de caráter estrutural.
Ou seja, a projeção sobre a realidade de
um "modelo de pensamento" segundo o qual, assim como Aquiles não
alcança a tartaruga, assim também a graça não
alcança as segundas uniões, por motivos lógicos
e ontológicos!
A
realidade da experiência não importa nada. Ao contrário, é suspeita. Não importa que, nos fatos, todos os
Aquiles alcancem e superem as tartarugas. Não importa que pode haver comunhão
nas "famílias ampliadas". Importa apenas um raciocínio lógico, a seu
modo convincente, mas incapaz de explicar o real.
Com
essa "lógica estática" – rigorosamente contrária ao devir – pensam
aqueles que chamam de "coabitantes
more uxorio" homens e mulheres regularmente casados perante a lei.
Como pretende ter um acesso diferente à realidade – ou seja, unicamente a lei
canônica – a posição dos cardeais se
emancipa do real complexo e o reconstrói abstrata e assepticamente. Tenta
bater o pensamento da complexidade com um simplismo maximalista.
Com
esse "argumento ontológico"
invertido, dispensam a experiência. Fecham-se na pura
autorreferencialidade. Excluem para a Igreja qualquer saída significativa.
Só assim os quatro
signatários podem dizer, sem corar, alimentar dúvidas sobre uma impressionante
série de abstrações:
a)
Como se pode reconciliar com a Igreja quem – segundo eles – não é casado?
b)
Como se pode aceitar que seja perdoado um ato “intrinsecamente mau”?
c)
Como se pode viver em estado de graça se se vive em estado de pecado?
d)
Como se pode desmentir um papa santo como João Paulo II?
ANDREA GRILLO Teólogo italiano autor dos artigos |
Não,
de acordo com os quatro cardeais,
Aquiles nunca irá alcançar a tartaruga. Ao "estado de pecado" não
pode seguir o "estado de graça". Um papa "não santo"
não pode contradizer um "papa santo". O mundo e a Igreja
"são" e não podem não ser. O devir e o movimento não são e não podem
ser. Ou, melhor, são admissíveis apenas em condições rigorosa e imutavelmente
estabelecidas pelo papa santo, não pelo não santo. O que foi escrito em 1981 parece se tornar, para eles, "palavra de
Deus", "verbo revelado", "verdade imutável",
"pedra angular".
Portanto,
a tartaruga da verdade nunca será alcançada pelo modernismo de Aquiles. A
Igreja permanecerá firme na sua autossuficiência autorreferencial. Non prevalebunt [não prevalecerão]. Esse
é o preço alto demais que os quatro cardeais pagaram a uma teoria inadequada. Um defeito de experiência os torna
substancialmente cegos. E o devir parece não ter força alguma justamente
com eles.
*
ANDREA GRILLO, católico leigo italiano casado, é teólogo e professor
do Pontifício Ateneu Santo Anselmo,
em Roma; do Instituto Teológico
Marchigiano, em Ancona; e do Instituto
de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
Ambas matérias foram traduzidas do italiano
por Moisés Sbardelotto. A versão
original do primeiro artigo, é encontrável aqui;
o original do segundo artigo, é acessível aqui.
Fonte: Instituto Humanitas
Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 16 de novembro de 2016 – Internet: clique aqui;
Quinta-feira, 17 de novembro de 2016 – Internet: clique aqui.
Os quatro cardeais parecem se esquecer de algo
fundamental:
Nenhum documento doutrinal do magistério da Igreja
definiu como “doutrina de fé divina e católica” a indissolubilidade do
matrimônio cristão
José María
Castillo
Teólogo
católico espanhol
Religión
Digital
15-11-2016
JOSÉ MARÍA CASTILLO |
Fala-se
nestes dias de alguns cardeais que andam
inquietos com a possível permissividade do Papa Francisco, quando se trata de
tolerar que pessoas casadas, divorciadas e recasadas recebam a sagrada comunhão.
Pode o Papa permitir isso?
Se
for de ajuda para esses cardeais, e muitas outras pessoas, terem mais dados
sobre o assunto, me pareceu que pode ser
útil recordar o seguinte: a Igreja, durante séculos, admitiu o divórcio em
determinados casos.
Por
exemplo, o Papa Gregório II, no ano
de 726, respondeu a uma consulta que lhe fez o bispo São Bonifácio: o que deve fazer o marido cuja mulher ficou doente
e, em consequência, não pode lhe dar o débito conjugal? [Manter relações
sexuais com ele, por exemplo] Resposta do Papa: “Seria bom que tudo continuasse
igual e houvesse por parte (do marido) a continência. Mas, como isso é de
homens grandes, quem não puder se
conter, que se case novamente, mas que não deixe de ajudar economicamente a
mulher que adoeceu e não ficou excluída por culpa detestável” (Jacques Paul
Migne. Patrologiae Cursus Completus.
Series Latina – sigla PL 89,
525).
Fará
bem ter presente que esta prática esteve
em vigor durante séculos, já que no século XI ela volta a se repetir no Decreto de Graciano (Cf. J. Gaudemet, O
vínculo matrimonial: incerteza na Alta Idade Média, recolhido por R. Metz – J.
Sclick, Matrimonio y Divorcio,
Salamanca, 1974, p. 102-103). É importante, neste assunto, o estudo de M.
Sotomayor, Tradición de la Iglesia con respecto al divorcio - Notas históricas:
Proyección 28 (1981) p. 55.
Além
disso, o fato de que o divórcio era uma
prática admitida naqueles séculos consta claramente em uma resposta do Papa Inocêncio a Probo (PL 20, 602-603). E ainda, outro dado: no século VIII,
sabe-se com segurança que o Direito Eclesiástico Bizantino, tal como o
testifica Leão o Isáurico, indica
uma série de casos (e circunstâncias) em que a Igreja admitia sem dificuldades
a separação matrimonial dos esposos (Ennio Cortese, Le Grandi Linee della Storia Giuridica Medievale, Roma 2008,
173-175).
É verdade que o Concílio de
Trento, na
sessão 24, can. 5, anatematiza quem
disser que “o vínculo do matrimônio pode ser dissolvido” (Enchiridion symbolorum. Ed. Heinrich
Denzinger; Peter Hünermann – sigla DH
1805). Mas, quando se fala de “anátemas”
na doutrina de Trento, é fundamental ter presente que isso não significa nada
mais que uma decisão disciplinar. Não se trata de uma questão dogmática,
como já analisou minuciosamente e com toda a documentação pertinente o prof. P.
F. Fransen, concordando com o estudo magistral de A. Lang, Der Bedeutungswandel
der Begriffe fides und haeresis (cf. Münchener theologische Zeitschrift 4 (1953) p. 133-146).
E,
sobretudo, sabe-se que nenhum documento doutrinal do magistério da Igreja
definiu como “doutrina de fé divina e católica” a indissolubilidade do
matrimônio cristão. Portanto, tudo o que
se fala sobre este assunto pertence ao âmbito disciplinar, não dogmático.
Se
a Igreja durante muitos séculos admitiu sem problemas que a sua fé seja tocada
pela possibilidade de dissolução do matrimônio, em casos justificados, corresponde ao poder disciplinar do Papa
decidir se as pessoas divorciadas e recasadas podem ou não comungar. Não há
razões, portanto, para se angustiar com a decisão que tenha tomado, ou possa
tomar, o Romano Pontífice.
Traduzido
do espanhol por André Langer. Acesse
a versão original, clicando aqui.
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