Quando uma Igreja não é profética

Trump e a miopia dos bispos
norte-americanos

Massimo Faggioli

Houve medo da parte de muitos bispos, clero e intelectuais católicos
de denunciar a retórica de Trump do mesmo modo como foi
denunciada a cultura abortista
TIMOTHY DOLAN
Cardeal-Arcebispo de Nova York entre os candidatos Hillary Clinton e Donald Trump em um jantar beneficente
Quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Trump foi eleito o 45º presidente dos Estados Unidos da América (EUA), contra toda previsão. Abre-se uma fase inédita e perigosa para a democracia na América, e especialmente para as Igrejas americanas que pretendem ainda ser a alma desta nação. Um país profundamente moralista como os EUA elegeu uma pessoa como Trump que se gloria da sua imoralidade não somente sobre as questões sexuais, mas também fiscais e da ética dos negócios (business), que – ao menos nas aparência – é ainda importante na América.

É uma eleição presidencial que desmascara algumas hipocrisias da cultura americana e revela a crise seja da cultura progressista e secularizada que daquela conservadora e religiosa, ambas obcecadas pela questão identitária.

Três são os fatores principais:
1º) Trump foi eleito devido as dificuldades econômicas e sociais dos esquecidos pela globalização, em protesto contra um sistema econômico e financeiro do qual os Clinton fazem parte não menos que Trump, mas do qual os Clinton foram responsabilizados por serem políticos profissionais. Há, portanto, um protesto da América profunda contra a América das elites culturais e secularizadas e do sistema de mass media (imprensa e comunicação) do establishment [grupo dominante].

2º) Há, enfim, uma parte de ressentimento contra o primeiro presidente afro-americano, Obama, que é parte daquela elite econômica e intelectual, mas é também o rosto da América futura, na qual os brancos serão logo uma minoria entre as minorias.

3º) A campanha de Trump explorou também o ressentimento racial daquela América profunda que jamais aceitou Obama como legítimo presidente. A América religiosa não coincide com aquela América profunda e reacionária, mas é parte dela.

Abre-se um problema

A eleição de Trump abre um problema particular para a Igreja Católica americana:
a) diante de sua história, como Igreja “importada” pelos imigrantes em tempos mais recentes em relação aos fundadores;
b) diante de sua dimensão global, com um papa como Francisco que representa a alternativa ao sistema global que uma boa parte dos bispos americanos não desejou escolher, preferindo Trump.
DANIEL NICHOLAS DINARDO
Cardeal-arcebispo de Galveston-Houston nos Estados Unidos
Eleito presidente da Conferência dos Bispos Norte-Americanos

O episcopado americano teve muito mais medo de uma presidência Clinton que medo de Trump, colocou-se contra a parte economicamente e politicamente frágil da própria Igreja, e renunciou a elaborar uma palavra forte diante das mensagens mais violentas da campanha eleitoral de Trump, longa quase um ano e meio.

Muitos bispos esperavam há muito tempo uma vitória de Trump temendo, não sem alguma razão, uma radicalização das políticas abortistas de Clinton (uma radicalização que revelou a miopia política de Clinton e é um dos elementos da derrota), e não considerando que durante os governos dos republicanos ideologicamente a favor da vida (pro-life), o número dos abortos aumenta, em razão dos cortes nas políticas sociais. [Aí está uma das incoerências das posições conservadoras nos Estados Unidos e, também, em outros países do mundo! Em nome da “defesa da vida”, apoia-se ou silencia-se diante de políticos que aumentam a desigualdade social!]

Houve medo por parte de muitos bispos, clero e intelectuais católicos de denunciar a retórica de Trump do mesmo modo como foi denunciada a cultura abortista da “identity politics[1] do Partido Democrata. Trata-se de um erro de alcance histórico que a Igreja americana pagará politicamente, mas também espiritualmente. Os primeiros a pagar serão os pobres na América, mais que com uma presidência de Hillary Clinton.

Que tipo de diálogo e sobre quais questões?

A semana seguinte à eleição de Trump, viu a Assembleia Anual da Conferência Episcopal, eleger a nova diretoria para o próximo triênio: elegeu como novo presidente o cardeal Daniel Nicholas DiNardo (um dos que assinou a carta dos treze cardeais contra Francisco durante o Sínodo de outubro de 2015), e elegeu como vice-presidente (portanto, segundo a tradição, provavelmente o presidente no triênio 2019-2022) o arcebispo de Los Angeles, José Horacio Gómez, o bispo mais visível da população católica dos latinos nos Estados Unidos, apresentando-a como uma resposta à eleição de Trump.

A eleição de Gómez é uma escolha que não absolve os bispos norte-americanos da sua concordância em relação a Trump. Que os católicos latinos nos EUA estejam em boas relações com os latino-americanos da América Latina é um mito. São mundos diferentes, como são mundos diversos, a esta altura, a Igreja de Francisco e o episcopado norte-americano: as nomeações de Francisco incidem sobre as Igrejas locais [dioceses], mas não – ao menos até agora – sobre a Conferência Episcopal.

Os bispos deverão dialogar com Trump, mas Trump buscará contentar os bispos sobre uma série muito limitada de questões. Toda a cultura social e política da Igreja institucional nos EUA sai danificada por estas eleições pela sua manifesta incapacidade de perceber o que estava acontecendo no país.

As primeiras nomeações de Trump, anunciadas nos primeiros dez dias após a eleição, mantêm a ameaça feita: o nacionalismo “white supremacy” [supremacia branca] entra na Casa Branca, diante de quem ainda se obstina a ler o resultado das urnas em termos materialistas de dificuldades econômicas. [A vitória de Trump abriu a porteira para passar toda uma sorte de organizações racistas, antiestrangeiras e preconceituosas!]
JOSÉ HORACIO GÓMEZ
Arcebispo de Los Angeles nos Estados Unidos
Eleito para a vice-presidência da Conferência Episcopal Norte-Americana

A reviravolta que Trump imporá

A Igreja Católica norte-americana está dividida, como e até mais que outras Igrejas, entre identidade culturais, políticas e etnias diversas, e portanto as reações são diversas. A campanha de Trump capitalizou estas divisões acentuando a identidade branca e conservadora, usando de modo instrumental a questão do aborto para atrair o voto católico.

Como no restante dos EUA, também na Igreja Católica democratas e republicanos vivem mundos diferentes, do ponto de vista existencial e intelectual. Há um catolicismo em estado de choque: os EUA são um país que se percebe como entidade espiritual e a eleição de Trump é percebida como um sinal de grave crise espiritual. Há quem possa permitir-se de ver esta transição de poder como uma das tantas na história norte-americana, mas não o é. Especialmente para aqueles que não têm a pele branca, é um momento de consternação e de medo.

O medo é evidente especialmente entre os latinos, os árabes e os muçulmanos, os asiáticos, as minorias sexuais. A questão não é ter ou não ter nada a temer da lei: é o temor do racismo de alguns setores da sociedade norte-americana, que sempre fizeram parte da sociedade, mas que há cinquenta anos aproximadamente foram mantidos à margem da vida política, mesmo gozando frequentemente da proteção da polícia e do poder judiciário. Agora, com Trump, se sentem legitimados novamente a propor com uma linguagem violenta o seu designo de uma América etnicamente pura. [Não por acaso, já comemoraram efusivamente a vitória de Trump a Ku Klux Klan, e o movimento da “Supremacia Branca”! Em um país cuja questão racial está longe de ser pacífica e uma questão já resolvida, isso é jogar gasolina ao fogo!]

A presidência dos Estados Unidos tem uma função simbólica evidente mesmo do ponto de vista religioso: a presidência tem uma função de pontifex [pontífice, sacerdote]. Com a presidência Trump o excepcionalismo americano morre. A eclesiologia política dos Estados Unidos é inclusiva: Obama a encarnava, Trump a rejeita. A busca de uma adesão entre os bispos e Trump não considera a reviravolta a que está submetida a eclesiologia católica: Trump interpreta em um senso étnico-racial um certo sectarismo típico do neoconservadorismo católico norte-americano contemporâneo.

N O T A

[ 1 ] A política de identidade, também chamada de política identitária, refere-se a posições políticas baseadas nos interesses e perspectivas dos grupos sociais com os quais as pessoas se identificam. A política de identidade inclui as maneiras pelas quais a política das pessoas pode ser moldada por aspectos de sua identidade através de organizações sociais vagamente correlacionadas. Exemplos incluem organizações sociais baseadas em raça, identidade de gênero, etnia, nacionalidade, orientação sexual, deficiência, religião, cultura, língua e dialeto. Nem todos os membros de um determinado grupo estão envolvidos na política de identidade. O termo política identitária surgiu na última parte do século XX, durante a Era dos Direitos Civis. Durante esse período, a política de identidade foi usada por um grupo minoritário para formar uma coalizão com membros da maioria. Agora o termo é popularmente usado quando se refere a movimentos nacionalistas (Fonte: Wikipédia).

Traduzido do italiano por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fonte: Settimana News – Política – Terça-feira, 22 de novembro de 2016 – Internet: clique aqui.

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