“Não é possível ser católico e sectário”
Entrevista com o Papa Francisco por ocasião da
viagem apostólica à Suécia
Ulf Jonsson
Padre
Jesuíta e Jornalista
La
Civiltà Cattolica (Roma – Itália)
28-10-2016
No alto: PAPA FRANCISCO E PE. ULF JONSSON Embaixo: Padre Ulf Jonsson, Papa Francisco e Padre Antonio Spadaro |
Durante
um encontro dos diretores das revistas culturais europeias da Companhia de
Jesus, em meados de junho, eu expressei ao Pe.
Antonio Spadaro, diretor da La
Civiltà Cattolica, um desejo que tinha no meu coração há muito tempo: entrevistar o Papa Francisco às vésperas da
sua viagem apostólica à Suécia, no dia 31 de outubro de 2016, para
participar da comemoração ecumênica dos
500 anos da Reforma Luterana.
Eu
pensava que uma entrevista era a melhor forma de preparar o país para a
mensagem que o pontífice dirigiria às pessoas durante a sua visita. Como
diretor da revista cultural dos jesuítas suecos, Signum, pensei que esse
objetivo entrava plenamente na nossa missão.
O ecumenismo – assim como o
diálogo entre as religiões e também com os não crentes – é muito apreciado pelo
papa. Ele
fez com que se compreendesse isso de muitos modos. Mas, acima de tudo, ele mesmo é um homem de reconciliação. Francisco
está profundamente convencido de que as pessoas devem superar barreiras e
cercas, sejam elas de qualquer tipo. Ele
acredita naquela que define como a "cultura do encontro". E isso
porque todos podem cooperar para o bem comum da humanidade. Eu queria que essa
visão de Francisco pudesse tocar a mente e o coração de muitos antes da chegada
do papa na Suécia: a entrevista seria o melhor meio para alcançar tal objetivo.
Eu disse isso ao Pe. Spadaro, com o qual eu continuei a reflexão até agosto,
quando, juntos, chegamos à conclusão de que era realmente oportuno apresentar
ao pontífice esse pedido, de modo que ele pudesse decidir se gostaria de
realizá-la ou não. O papa tomou algum tempo para refletir sobre a sua
oportunidade. No fim, a resposta foi positiva, e ele marcou um compromisso conosco em Santa Marta, no sábado, 24 de
setembro, no fim da tarde.
Era
um dia realmente agradável pela temperatura e pela luminosidade do céu. Atravessando
o tráfego de Roma no carro com o Pe. Spadaro, eu me sentia ansioso, mas
contente. Chegamos em Santa Marta 15 minutos antes do previsto. Pensávamos em
esperar, mas, em vez disso, logo fomos convidados para subir até o andar onde o
papa tem o seu quarto. Quando o elevador abriu, vi um guarda suíço que nos
cumprimentou com cortesia. Eu ouvia a voz do papa falando cordialmente com
outras pessoas em língua espanhola, mas não o via. Em certo ponto, ele apareceu
com duas pessoas, dialogando amavelmente. Ele cumprimentou a mim e ao Pe.
Spadaro com um sorriso, indicando-nos para entrar no seu quarto: ele chegaria
em breve.
Fiquei impressionado com
essa simples e calorosa familiaridade na acolhida. Foi-nos dito na portaria
que o papa tinha tido um dia sem descanso, e, portanto, eu pensava que ele
estava cansado no fim dia. Mas, em vez disso, fiquei muito impressionado ao vê-lo tão cheio de energia e relaxado.
O
papa entrou no seu quarto e nos convidou para nos sentarmos onde preferíssemos.
Eu me sentei em uma poltrona, e, assim, o Pe. Spadaro se sentou na minha
frente. O papa se sentou no sofá no meio das duas poltronas. Eu quis me
apresentar no meu italiano não rico, mas suficiente para entender e para
dialogar com simplicidade. Depois de algumas piadas do papa, ligamos os
gravadores e começamos a conversa. O Pe.
Spadaro tinha traduzido do inglês algumas perguntas que eu queria fazer ao
papa e que, portanto, eu tinha preparado, mas, depois, a conversa entre nós
três fluiu naturalmente, em um clima amigável e sem distâncias artificiais.
Sobretudo,
foi franca e direta, sem rodeios e sem aquela atmosfera típica dos encontros
com grandes líderes ou pessoas de referência. Eu não tenho mais nenhuma dúvida de que o Papa Francisco ama a
conversa, comunicar-se com os outros. Às vezes, ele toma tempo para
refletir antes de responder, e as suas
respostas sempre transmitem um senso de envolvimento sério, mas não pesado ou
triste. Ou, melhor, durante a nossa visita, ele deu sinais do seu humor
várias vezes.
Eis
a entrevista.
Viagem Apostólica de Papa Francisco à Suécia Ato Ecumênico na Arena de Malmö - Suécia Segunda-feira, 31 de outubro de 2016 |
Santo
Padre, no dia 31 de outubro, o senhor vai visitar Lund e Malmö para
participar da comemoração ecumênica dos 500 anos da Reforma, organizada pela
Federação Luterana Mundial e pelo Pontifício Conselho para a Promoção da
Unidade dos Cristãos. Quais são as suas esperanças e as suas expectativas para
esse histórico evento?
Papa Francisco: Gostaria de dizer apenas
uma palavra: aproximar-me. A minha
esperança e a minha expectativa são as de me aproximar mais aos meus irmãos e
às minhas irmãs. A proximidade faz bem a
todos. A distância, ao contrário, nos faz adoecer. Quando nos afastamos, fechamo-nos dentro de nós mesmos e nos tornamos
mônadas, incapazes de nos encontrar. Deixamo-nos tomar pelos medos. É
preciso aprender a se transcender para encontrar os outros. Se não fizermos
isso, também nós, cristãos, adoecemos de divisão. A minha expectativa é a de
conseguir dar um passo de proximidade, a estar mais perto dos meus irmãos e das
minhas irmãs que vivem na Suécia.
Na
Argentina, os luteranos compõem uma comunidade bastante restrita. O senhor teve
a oportunidade de ter contatos diretos com eles no passado?
Papa Francisco: Sim, bastante. Recordo a
primeira vez que fui a uma igreja luterana: foi justamente na sua sede
principal na Argentina, na calle [rua]
Esmeralda, em Buenos Aires. Eu tinha 17 anos. Lembro-me bem daquele dia. Um
companheiro meu de trabalho, Axel
Bachmann, se casava. Ele era o tio da teóloga luterana Mercedes García Bachmann. E também a mãe de Mercedes, Ingrid,
trabalhava no laboratório onde eu trabalhava. Essa era a primeira vez que eu
assistia a uma celebração luterana. A segunda vez foi uma experiência mais
forte. Nós, jesuítas, temos a Faculdade de Teologia em San Miguel, onde eu
lecionava. Ali perto, a menos de 10 quilômetros de distância, havia a Faculdade
de Teologia Luterana. O reitor era um húngaro, Leskó Béla, realmente um grande homem. Com ele, eu tinha relações
muito cordiais. Eu era professor e tinha a cátedra de Teologia Espiritual. Eu
convidei o professor de Teologia Espiritual daquela faculdade, um sueco, Anders Ruuth, para dar, junto comigo,
aulas de espiritualidade. Eu me lembro que aquele era um momento realmente
difícil para a minha alma. Eu tive muita confiança nele e lhe abri o meu
coração. Ele me ajudou muito naquele momento.
Depois,
ele foi enviado para o Brasil – ele conhecia bem o português também – e,
depois, voltou para a Suécia. Lá, publicou a sua tese de habilitação sobre a
"Igreja Universal do Reino de Deus",
que tinha surgido no Brasil no fim dos anos 1970. Era uma tese crítica. Ele a
havia escrito em sueco, mas tinha um capítulo em inglês. Ele me enviou-a, e eu
li aquele capítulo em inglês: era uma joia. Depois, o tempo passou... Enquanto
isso, eu me tornei bispo auxiliar de Buenos Aires. Um dia, veio me visitar no
episcopado o então arcebispo primaz de Uppsala. O cardeal Quarracino não
estava. Ele me convidou para o culto deles na rua Azopardo, na Iglesia Nórdica de Buenos Aires, que
antes era chamada de "Igreja Sueca". Com ele, falei de Anders Ruuth,
que, depois, voltou mais uma vez para a Argentina, para celebrar um casamento.
Naquela ocasião, vimo-nos novamente, mas foi a última: um dos seus dois filhos,
o musicista – o outro era médico –, um dia, me telefonou para me dizer que ele
tinha morrido.
Outro
capítulo das minhas relações com os luteranos diz respeito à Igreja da Dinamarca.
Eu tinha uma bela relação com o pastor da época, Albert Andersen, que agora está nos Estados Unidos. Ele me convidou
duas vezes para fazer uma pregação. A primeira era em um contexto litúrgico.
Naquela ocasião, ele foi muito delicado: para evitar que se criassem
constrangimentos acerca da participação na comunhão, naquele dia, ele não
celebrou o culto, mas um batismo. Posteriormente, ele me convidou para proferir
uma conferência aos seus jovens. Eu me lembro que, com ele, eu tive uma
discussão muito forte à distância, quando ele já estava nos Estados Unidos. O
pastor me repreendeu tanto por causa daquilo que eu tinha dito sobre uma lei
que dizia respeito a problemas religiosos na Argentina. Mas eu devo dizer que
ele me repreendeu com honestidade e sinceridade, como um verdadeiro amigo.
Quando ele voltou para Buenos Aires, eu fui lhe pedir desculpas, porque, com
efeito, o modo como eu tinha me expressado naquele caso tinha sido um pouco
ofensivo.
ANDERS RUUTH (1926-2011) Pastor e Teólogo luterano que atuou na Argentina, Brasil e Suécia - amigo pessoal do Papa Francisco |
Depois,
eu também tive uma grande proximidade com o pastor David Calvo, argentino, da Iglesia Evangélica Luterana Unida. Ele também era uma boa pessoa.
Lembro-me também que, para o "Dia
da Bíblia", que se celebrava em Buenos Aires no fim de setembro,
voltei à primeira igreja na qual eu tinha estado quando jovem, na calle Esmeralda. E lá eu me encontrei
com Mercedes García Bachmann. Tivemos uma conversa. Esse foi o último encontro
institucional que eu tive com os luteranos quando eu era arcebispo de Buenos
Aires.
Depois,
entretanto, eu continuei tendo relações com amigos luteranos individuais em
nível pessoal. Mas o homem que fez muito
bem para a minha vida foi Anders Ruuth: eu penso nele com muito afeto e
reconhecimento. Quando a arcebispa primaz da Igreja da Suécia veio me
encontrar aqui, fizemos uma referência àquela amizade entre nós dois. Lembro-me
bem quando o arcebispa Antje Jackelén
veio aqui no Vaticano, em maio de 2015, em visita oficial: ela fez um grande e
belo discurso. Eu a encontrei posteriormente também por ocasião da canonização
de Maria Elizabeth Hesselblad.
Então, eu pude cumprimentar também o marido: são pessoas realmente amáveis.
Depois, como papa, fui pregar na Igreja
Luterana de Roma. Fiquei muito impressionado com as perguntas que me foram
feitas então: a do menino e a de uma senhora sobre a intercomunhão. Perguntas
belas e profundas. E o pastor daquela igreja é realmente bom!
Nos
diálogos ecumênicos, as diferentes comunidades deveriam tentar se enriquecer
reciprocamente com o melhor das suas tradições. O que a Igreja Católica poderia
aprender com a tradição luterana?
Papa Francisco: Vêm à minha mente duas
palavras: "reforma" e "Escritura". Tento me
explicar. A primeira é a palavra "reforma". No início, o gesto de
Lutero foi um gesto de reforma em um momento difícil para a Igreja. Lutero queria remediar uma situação
complexa. Depois, esse gesto – também por causa de situações políticas,
pensemos também no cuius regio eius religio
– tornou-se um "estado" de separação, e não um "processo"
de reforma de toda a Igreja, que, ao contrário, é fundamental, porque a Igreja
é semper reformanda. A segunda
palavra é "Escritura", a Palavra de Deus. Lutero deu um grande
passo para colocar a Palavra de Deus nas mãos do povo. Reforma e Escritura são
as duas coisas fundamentais que podemos aprofundar olhando para a tradição
luterana. Agora, vêm à minha mente as Congregações Gerais antes do conclave e
como o pedido de uma reforma foi vivo e esteve presente nas nossas discussões.
PAPA FRANCISCO Discursa durante Ato Ecumênico na Arena de Malmö - Suécia Segunda-feira, 31 de outubro de 2016 |
Apenas
uma única vez antes do senhor um papa visitou a Suécia, João Paulo II, em 1989.
Aquele era um tempo de entusiasmo ecumênico e de profundo desejo de unidade
entre católicos e luteranos. Desde então, o movimento ecumênico parece ter
perdido vigor, e novos obstáculos surgiram. Como deveriam ser geridos esses
obstáculos? Quais são, na sua opinião, os melhores meios para promover a
unidade dos cristãos?
Papa Francisco: Claramente, cabe aos
teólogos continuar dialogando e estudando os problemas: sobre isso, não há
dúvida alguma. O diálogo teológico deve
continuar, porque é um caminho a se percorrer. Penso nos resultados que,
sobre essa estrada, foram alcançados com o grande
documento ecumênico sobre a justificação: foi um grande passo à frente. É
claro, depois desse passo, imagino que não será fácil seguir em frente por
causa das diversas capacidades de compreender algumas questões teológicas. Eu
perguntei ao Patriarca Bartolomeu se era verdade o que se conta do Patriarca Atenágoras,
isto é, que ele teria dito a Paulo VI: "Sigamos em frente nós e coloquemos
os teólogos para discutir entre si em uma ilha". Ele me disse que é uma
piada verdadeira. Mas, sim, deve-se
continuar o diálogo teológico, embora não será fácil.
Pessoalmente,
também acho que se deve deslocar o entusiasmo para a oração comum e para as
obras de misericórdia, isto é, o trabalho feito juntos na ajuda dos doentes,
dos pobres, dos encarcerados. Fazer algo
juntos é uma forma elevada e eficaz de diálogo. Eu também penso na educação. É importante
trabalhar juntos e não sectariamente. Deveríamos ter um critério muito claro em
todos os casos: fazer proselitismo no
campo eclesial é pecado. Bento XVI nos disse que a Igreja não cresce por
proselitismo, mas por atração. O
proselitismo é uma atitude pecaminosa. Seria como transformar a Igreja em
uma organização.
Falar, rezar, trabalhar
juntos:
esse é o caminho que devemos percorrer. Veja, na unidade, aquele que nunca erra
é o inimigo, o demônio. Quando os cristãos são perseguidos e mortos, é porque
são cristãos e não porque são luteranos, calvinistas, anglicanos, católicos ou
ortodoxos. Existe um ecumenismo do
sangue.
Lembro-me
de um episódio que eu vivi com o pároco da paróquia de Sankt Joseph, em
Wandsbek, Hamburgo. Ele levava adiante a causa dos mártires guilhotinados por
Hitler, porque ensinavam o catecismo. Foram guilhotinados um atrás do outro.
Depois dos dois primeiros, que eram católicos, foi morto um pastor luterano
condenado pelo mesmo motivo. O sangue dos três se misturou. O pároco me disse
que, para ele, era impossível continuar a causa de beatificação dos dois
católicos sem inserir o luterano; o seu sangue tinha se misturado! Mas me
lembro também da homilia de Paulo VI em Uganda, em 1964, que mencionava juntos,
unidos, os mártires católicos e anglicanos. Eu tive esse pensamento quando
também visitei a terra de Uganda. Isso também acontece nos nossos dias: os
ortodoxos, os mártires coptas mortos na Líbia... É o ecumenismo do sangue.
Portanto: rezar juntos, trabalhar juntos
e compreender o ecumenismo do sangue.
PAPA FRANCISCO acolhe carinhosamente os fiéis durante a Santa Missa celebrada no Swedbank Stadion em Malmö (Suécia) Terça-feira, 1 de novembro de 2016 |
Uma
das maiores causas de inquietação do nosso tempo é a difusão do terrorismo
revestido de termos religiosos. O encontro de Assis enfatizou também a
importância do diálogo inter-religioso. Como o senhor o viveu?
Papa Francisco: Havia todas as religiões que
têm contato com [a Comunidade de] Santo Egídio. Eu me encontrei com aqueles que
a Santo Egídio contatou: não fui eu que escolhi quem encontrar. Mas estavam em
tantos, e o encontro foi muito
respeitoso e sem sincretismo. Todos juntos falamos da paz e pedimos a paz.
Dissemos juntos palavras fortes pela paz, que as religiões realmente querem. Não se pode fazer a guerra em nome da
religião, de Deus: é uma blasfêmia, é satânico. Hoje eu recebi cerca de 400
pessoas que estavam em Nice e cumprimentei as vítimas, os feridos, pessoas que
perderam esposas ou maridos ou filhos. Aquele louco que cometeu aquele massacre
fez isso crendo que o fazia em nome de Deus. Pobre homem, era um
desequilibrado! Com caridade, podemos dizer que era um desequilibrado que
tentou usar uma justificativa no nome de Deus. Por isso, o encontro de Assis é
muito importante.
Mas
o senhor recentemente falou também de outra forma de terrorismo, o das fofocas. Em que sentido e como é
possível vencê-lo?
Papa Francisco: Sim, existe um terrorismo interno e subterrâneo que é um vício difícil de
extirpar. Eu descrevo o vício das murmurações
e das fofocas como uma forma de
terrorismo: é uma forma de violência
profunda que todos temos à disposição na alma e que requer uma conversão
profunda. O problema desse terrorismo é que todos podemos colocá-lo em
ação. Toda pessoa é capaz de se tornar
terrorista mesmo que simplesmente usando a língua. Eu não estou falando das
disputas que se fazem abertamente, como as guerras. Estou falando de um
terrorismo furtivo, escondido, que é feito jogando palavras como
"bombas" e que faz muito mal. A raiz desse terrorismo está no pecado
original, e é uma forma de criminalidade. É
um modo de ganhar espaço para si, destruindo o outro. É necessária,
portanto, uma profunda conversão do coração para vencer essa tentação, e é
preciso se examinar muito sobre esse ponto. A espada mata muitas pessoas, mas a
língua mata mais, diz o apóstolo Tiago no terceiro capítulo da sua carta. A
língua é um membro pequeno, mas pode desenvolver um fogo de maldade e incendiar
toda a nossa vida. A língua pode se
encher de veneno mortal. Esse terrorismo é difícil de domar.
A
religião pode ser uma bênção, mas também uma maldição. Os meios de comunicação
muitas vezes reportam notícias de conflitos entre grupos religiosos no mundo.
Alguns afirmam que o mundo seria mais pacífico se a religião não existisse. O
que o senhor responde a essa crítica?
Papa Francisco: As idolatrias é que estão na
base de uma religião, não a religião! Há
idolatrias ligadas à religião: a idolatria do dinheiro, das inimizades, do
espaço superior ao tempo, da cobiça da territorialidade do espaço. Há uma
idolatria da conquista do espaço, do domínio, que ataca as religiões como um
vírus maligno. E a idolatria é um
fingimento de religião, é uma religiosidade equivocada. Eu a chamo de
"uma transcendência imanente" isto é, uma contradição. Ao contrário,
as religiões verdadeiras são o desenvolvimento da capacidade que o ser humano
tem de transcender ao absoluto. O
fenômeno religioso é transcendente e tem a ver com a verdade, a beleza, a
bondade e a unidade. Se não há essa abertura, não há transcendência, não há
verdadeira religião, há idolatria. A
abertura à transcendência, portanto, não pode, absolutamente, ser causa de
terrorismo, porque essa abertura está sempre unida à busca da verdade, da
beleza, da bondade e da unidade.
PAPA FRANCISCO Incensa o altar durante a Santa Missa celebrada no Swedbank Stadion em Malmö - Suécia Manhã de Terça-feira, 1 de novembro de 2016 |
O
senhor falou muitas vezes em termos muito claros sobre a terrível situação dos
cristãos em algumas áreas do Oriente Médio. Ainda há esperança para um
desenvolvimento mais pacífico e humano para os cristãos naquela área?
Papa Francisco: Eu acredito que o Senhor não
deixará o Seu povo entregue a si mesmo, não o abandonará. Quando lemos as duras
provações do povo de Israel na Bíblia, ou fazemos memória das provações dos
mártires, constatamos como o Senhor sempre veio em auxílio do Seu povo.
Recordemos no Antigo Testamento a morte dos sete filhos com a sua mãe no livro
dos Macabeus. Ou o martírio de Eleazar. Certamente, o martírio é uma das formas da vida cristã. Recordemos São
Policarpo e a carta à Igreja de Esmirna, que nos dá o relato das circunstâncias
da sua prisão e da sua morte. Sim, neste momento, o Oriente Médio é uma terra
de mártires. Podemos, sem dúvida, falar
de uma Síria mártir e martirizada. Quero citar uma recordação pessoal que
ficou gravada no meu coração: em Lesbos, eu me encontrei com um pai com dois
filhos. Ele me disse que era muito apaixonado pela sua esposa. Ele é muçulmano,
e ela era cristã. Quando os terroristas vieram, quiseram que ela tirasse a
cruz, mas ela não quis, e eles a degolaram na frente do seu marido e dos seus
filhos. E ele continuava me dizendo: "Eu a amo tanto, eu a amo
tanto". Sim, ela é uma mártir. Mas o cristão sabe que há esperança. O
sangue dos mártires é semente de cristãos: sabemos isso desde sempre.
O
senhor é o primeiro papa não europeu há mais de 1.200 anos, e muitas vezes
ressaltou a vida da Igreja em regiões consideradas “periféricas” do mundo.
Onde, na sua opinião, a Igreja Católica terá as suas comunidades mais vivas nos
próximos 20 anos? E de que modo as Igrejas da Europa poderão contribuir com o
catolicismo do futuro?
Papa Francisco: Essa é uma pergunta ligada
ao espaço, à geografia. Eu tenho alergia de falar de espaços, mas sempre digo que, a partir das periferias,
veem-se as coisas melhor do que a partir do centro. A vivacidade das
comunidades eclesiais não depende do espaço, da geografia, mas do espírito. É
verdade que as Igrejas jovens têm um espírito com mais frescor e, por outro
lado, existem Igrejas envelhecidas, Igrejas um pouco adormecidas, que parecem
estar interessadas apenas em conservar o seu espaço. Nesses casos, eu não digo
que falta o espírito: ele existe, sim, mas está fechado em uma estrutura, de um
modo rígido, temeroso de perder espaço. Nas Igrejas de alguns países, vê-se
justamente que falta frescor. Nesse sentido, o frescor das periferias dá mais espaço ao espírito. É preciso
evitar os efeitos de um mau envelhecimento das Igrejas.
É
bom reler o capítulo terceiro do profeta Joel, onde ele diz que os anciãos
terão sonhos e que os jovens terão visões. Nos
sonhos dos idosos, há a possibilidade de que os nossos jovens tenham novas
visões, tenham novamente um futuro. Em vez disso, as Igrejas, às vezes,
estão fechadas nos programas, nas programações. Eu admito: eu sei que eles são
necessários, mas eu custo muito para
colocar muita esperança nos organogramas. O espírito está pronto para nos
empurrar, para ir em frente. E o
espírito se encontra na capacidade de sonhar e na capacidade de profetizar.
Esse, para mim, é um desafio para toda a Igreja. E a união entre idosos e
jovens é, para mim, o desafio do momento para a Igreja, o desafio para a sua
capacidade de frescor. Por isso, em Cracóvia, durante a Jornada Mundial da
Juventude, eu recomendei que os jovens falassem com os avós. A Igreja jovem rejuvenesce mais quando os
jovens falam com os idosos e quando os idosos sabem sonhar coisas grandes,
porque isso faz com que os jovens profetizem. Se os jovens não profetizam, falta o ar da Igreja.
O BISPO MUNIB YUNAN & PAPA FRANCISCO Assinaram uma Declaração Conjunta por ocasião da comemoração católico-luterana dos 500 Anos da Reforma Protestante Catedral Luterana de Lund (Suécia), Segunda-feira, 31 de outubro de 2016 Para lê-la em português, clique aqui |
A
sua visita à Suécia vai tocar um dos países mais secularizados do mundo. Uma
boa parte da sua população não acredita em Deus, e a religião desempenha um
papel bastante modesto na vida pública e na sociedade. Na sua opinião, o que
perde uma pessoa que não acredita em Deus?
Papa Francisco: Não se trata de perder
alguma coisa. Trata-se de não
desenvolver adequadamente uma capacidade de transcendência. O caminho da
transcendência dá lugar a Deus, e nisso são importantes também os pequenos
passos, até mesmo o de ser ateu para ser agnóstico. O problema para mim é quando estamos fechados e consideramos a própria
vida perfeita em si mesma e, portanto, fechada em si mesma, sem necessidade de
uma radical transcendência. Mas, para abrir os outros à transcendência, não
há necessidade de dizer muitas palavras e discursos. Quem vive a transcendência é visível: é uma testemunha viva. No
almoço que eu tive em Cracóvia [Polônia] com alguns jovens, um deles me
perguntou: "O que devo dizer a um amigo meu que não acredita em Deus? Como
faço para convertê-lo?". Eu lhe respondi: "A última coisa que você deve fazer é dizer alguma coisa. Aja!
Viva! Depois, diante da sua vida, do seu testemunho, o outro, talvez, vai lhe
perguntar por que você vive assim". Estou convencido de que quem não
crê ou não busca a Deus talvez não sentiu a inquietação de um testemunho. E
isso está muito ligado ao bem-estar. A
inquietação dificilmente é encontrada no bem-estar. Por isso, eu acho que, contra o ateísmo, isto é, contra o
fechamento à transcendência, valem realmente apenas a oração
e o testemunho.
Os
católicos na Suécia são uma pequena minoria e, na sua maior parte, composta por
imigrantes de várias nações do mundo. O senhor vai se encontrar com alguns
deles, ao celebrar a missa em Malmö, no dia 1º de novembro. Como vê o papel dos
católicos em uma cultura como a sueca?
Papa Francisco: Vejo uma convivência saudável, em que cada um pode viver a própria fé e expressar
o próprio testemunho vivendo um espírito aberto e ecumênico. Não se pode
ser católico e sectário. É preciso tender para estar junto com os outros. "Católico" e "sectário"
são duas palavras em contradição. Por isso, no início, eu não previa
celebrar uma missa para os católicos nesta viagem: eu queria insistir em um
testemunho ecumênico. Depois, refleti bem sobre o meu papel de pastor de um
rebanho católico que chegará também de outros países vizinhos, como a Noruega e
a Dinamarca. Então, respondendo ao fervoroso pedido da comunidade católica,
decidi celebrar uma missa, esticando a viagem em um dia. De fato, eu queria que
a missa não fosse celebrada no mesmo dia nem no mesmo lugar do encontro
ecumênico, para evitar que se confundissem os planos. O encontro ecumênico deve ser preservado no seu significado profundo,
segundo um espírito de unidade, que é o meu. Isso criou problemas
organizativos, eu sei, porque vou estar na Suécia também no Dia de Todos os
Santos, que, aqui em Roma, é importante. Mas, a fim de evitar maus entendidos,
eu quis que fosse assim.
O
senhor é um jesuíta. Desde 1879, os jesuítas desempenharam as suas atividades
na Suécia com paróquias, exercícios espirituais, a revista Signum e, nos últimos 15 anos, graças ao Instituto Universitário Newman. Que compromissos e que valores
deveriam caracterizar o apostolado dos jesuítas hoje neste país?
Papa Francisco: Eu acredito que a primeira
tarefa dos jesuítas na Suécia é favorecer de todos os modos o diálogo com
aqueles que vivem na sociedade secularizada e com os não crentes: falar, compartilhar, compreender, estar ao
lado. Depois, claramente, é preciso favorecer
o diálogo ecumênico. O modelo para os jesuítas suecos deve ser São Pedro
Fabro, que sempre estava a caminho e que era guiado por um espírito bom,
aberto. Os jesuítas não têm uma estrutura quieta. É preciso ter o coração inquieto e ter estruturas, sim, mas inquietas.
Quem
é Jesus para Jorge Mario Bergoglio?
Papa Francisco: Jesus para mim é aquele que me olhou com misericórdia e me salvou. A minha relação com Ele
sempre tem esse princípio e fundamento. Jesus
deu sentido à minha vida aqui na terra e esperança para a vida futura. Com
a misericórdia, Ele me olhou, me pegou, me colocou na estrada... E me deu uma graça importante: a graça da
vergonha. A minha vida espiritual está toda escrita no capítulo 16 de
Ezequiel. Especialmente nos versículos finais, quando o Senhor revela que
estabeleceria a sua aliança com Israel dizendo-lhe: "Tu saberás que eu sou
o Senhor, para que te recordes e te envergonhes e, na tua confusão, tu não
abras mais a boca, quando eu tiver te perdoado por aquilo que fizeste". A vergonha é positiva: faz você agir, mas
faz você entender qual é o seu lugar, quem você é, impedindo toda soberba e
vaidade.
Uma
palavra final, Santo Padre, sobre essa viagem à Suécia...
Papa Francisco: Aquilo que vem
espontaneamente à minha mente para acrescentar agora é simples: ir, caminhar juntos! Não ficar fechados
em perspectivas rígidas, porque, nessas, não há possibilidade de reforma.
* * * * * * *
O
papa, o Pe. Spadaro e eu passamos juntos em conversa por cerca de uma hora e
meia. No fim, Francisco nos acompanhou ao elevador. Ele nos recomendou para
rezar por ele. As portas se fecharam enquanto ele nos saudava com a mão e com
um sorriso radiante que nunca vou esquecer.
Lá
fora, já estava escuro. A cúpula de São Pedro, iluminada, revelava o seu
esplendor enquanto entrávamos no carro para voltar a tempo para a janta na
comunidade da Civiltà Cattolica.
Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. A versão original
desta entrevista pode ser baixada acessando aqui.
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