Papa Francisco deixa claro: «Eu sigo o Concílio»
O papa rejeita as dúvidas dos cardeais:
“Eles só sabem pensar em preto e branco”
Marco Ansaldo
Jornal “La
Repubblica” - Roma (Itália)
19-11-2016
É a polêmica nascida por causa da carta de quatro
cardeais ao papa, com
o pedido de “esclarecer” pontos do documento papal “Amoris
Laetitia”
PAPA FRANCISCO |
"Uma
bomba-relógio", definem alguns dos observadores mais atentos. E preveem,
vistos os tons de contestação contra um pontífice acusado até mesmo de se
desviar da fé: "Muito mais do que o
Vatileaks".
É a
polêmica nascida por causa da carta de quatro cardeais ao papa, com o pedido de
"esclarecer", com a dura resposta que chega agora de Francisco: "Alguns continuam não compreendendo,
ou branco ou preto".
O
papa argentino não espera o novo consistório para cortar o último ataque dos
falcões no Vaticano. Jorge Bergoglio joga com antecipação e enfrenta o assunto
na entrevista concedida nessa sexta-feira ao jornal dos bispos italianos, Avvenire. Destruindo, assim as armas, no
dia dedicado aos 17 novos cardeais, no braço de ferro com os conservadores que o acusam de "protestantizar" a Igreja ou
de "baratear" a doutrina católica. [Leia,
abaixo, este entrevista de Papa Francisco:]
No
dia 19 de setembro passado, quatro purpurados, hoje desprovidos de papéis
operacionais, mas considerados de nome e ainda mais livres para criticar o
pontífice – Walter Brandmüller, Raymond
L. Burke, Carlo Caffara e Joachim Meisner – escreveram uma carta em cinco
pontos, pedindo clareza sobre alguns aspectos doutrinais da exortação
apostólica Amoris laetitia (em
primeiro lugar, a comunhão para os
divorciados).
O
papa não tinha respondido à mensagem, divulgada há poucos dias. Nessa
sexta-feira, na entrevista, eis a referência explícita à carta: "Alguns – comenta Francisco – continuam não compreendendo, ou branco ou
preto, mesmo que seja no fluxo da vida que se deve discernir. O Concílio nos
disse isso. Os historiadores, porém, dizem que um Concílio, para ser bem
absorvido pelo corpo da Igreja, precisa de um século... Nós estamos na
metade". [Disse tudo!!! Ainda necessitamos
entrar no verdadeiro espírito do Concílio Vaticano II]
A
conversa com o jornal é ampla e aborda muitos temas: o ecumenismo, a
misericórdia, o Jubileu. Mas é o próprio
Francisco que quer responder às acusações contra ele. Em outras partes da
longa entrevista, ele explica que as
críticas "não me tiram o sono", e é preciso ver se aqueles que as
fazem querem apenas "justificar uma posição já assumida". Neste caso,
"não são honestas, são feitos com
mau espírito para fomentar divisão". E reitera: "A Igreja não é um time de futebol que busca torcedores".
Ainda
em 2015, outros 13 cardeais, todos membros do Sínodo ou com importantes cargos
na Cúria, como Robert Sarah, George Pell e Gerhard Ludwig Müller, enviaram uma
carta semelhante ao papa. Bergoglio rejeitou em bloco as suas demandas.
Nessa sexta-feira à noite, o
papa foi de surpresa ao Tribunal
Apostólico da Rota Romana. A Igreja, disse, a exemplo de Jesus, Bom
Samaritano, "se encarna nas
vicissitudes tristes e sofridas das pessoas, inclina-se sobre os pobres e sobre
aqueles que estão longe da comunidade eclesial ou se consideram fora dela por
causa do seu fracasso conjugal. No entanto, elas estão e continuam estando
incorporadas a Cristo em virtude do batismo".
Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. Acesse a versão
original deste artigo, clicando aqui.
“Eu não barateio a doutrina, eu sigo o Concílio”
Entrevista
com Papa Francisco
Stefania
Falasca
Jornal “Avvenire”
– Roma (Itália)
17-11-2016
Jubileu, ecumenismo, Concílio:
uma entrevista com Francisco às vésperas do fechamento
da Porta Santa.
“Porque a Igreja dá luz, mas não brilha com luz
própria. E, quando a Igreja, em vez de olhar para Cristo, olha demais para si
mesma, vêm também as divisões.”
PAPA FRANCISCO Fechando a Porta Santa da Basílica de São Pedro, no Vaticano, por ocasião do encerramento do Jubileu Extraordinário da Misericórdia - Ano Santo Domingo, 20 de novembro de 2016 |
"O
Jubileu? Eu não fiz um plano. As coisas vieram. Simplesmente, me deixei levar pelo Espírito. A Igreja é o Evangelho,
não é um caminho de ideias. Este Ano sobre a misericórdia é um processo
amadurecido ao longo do tempo, desde o Concílio... Também no campo ecumênico o
caminho vem de longe, com os passos dos meus antecessores. Esse é o caminho da
Igreja. Não sou eu. Eu não dei nenhuma aceleração. Na medida em que seguimos em
frente, o caminho parece ir mais rápido, é o
motus in fine velocior." [Expressão latina que pode ser traduzida
como: ao fim o movimento é mais veloz.
Ela é comumente usada para indicar a passagem mais veloz do tempo ao término de
um período histórico]
Casa Santa Marta, é meio-dia. A conversa com
o Papa Francisco entra diretamente nas dinâmicas de um período eclesial
intenso, e não podia deixar de se deter, em particular, sobre os encontros e os passos ecumênicos dados,
que pontilharam também as viagens apostólicas neste Ano da misericórdia que está prestes a se concluir, e sobre a busca prioritária da unidade dos
cristãos, neste tempo histórico dilacerado por conflitos.
Depois
da viagem à Suécia, eu lhe disse por telefone que, durante o voo de volta a
Roma, dialogando com os jornalistas sobre aquele importante encontro
reconciliado com os luteranos, tinha ficado sem resposta um comentário seu, e
que, há muito tempo, eu pensava em lhe dirigir algumas interrogações justamente
sobre o ecumenismo. Ele me pegou no contrapé, dizendo-me que poderia responder
imediatamente. "Mas agora...?", eu lhe disse, e ele me concedeu um
bem-humorado adiamento.
No
encontro, pelo menos eu cheguei com antecedência. Entrei com o meu filho,
enquanto chovia lá fora. Mas ele já estava esperando na porta. Como em outras
circunstâncias, é no limiar que eu o encontrei, como o pai de sempre, como na
primeira vez que eu o encontrei, há muitos anos. A paciência ao esperar parece ser a sua fibra, uma razão de ser, o seu
ofício.
Ele
pegou os óculos e folheou sem pressa a enorme quantidade de perguntas. À
margem, fez algumas anotações. Enquanto se levantava para dispor as flores
banhadas de chuva, eu pensei nas “gotas finais” do Ano Santo, na Porta da
misericórdia que está prestes a se fechar e reli uma observação de 50 anos
atrás do patriarca ortodoxo Atenágoras no diálogo com Olivier Clément, que me
surpreendeu: «Deveremos perscrutar mais profundamente o destino de Pedro no
Evangelho. Pedro – escreveu São
Gregório Palamas – é o próprio protótipo
do homem novo, ou seja, o pecador perdoado. Ele pode estar aqui apenas para recordar à Igreja que ela vive do
perdão de Deus e não tem outra força senão a Cruz. Se na Igreja existe um
bispo que é “o análogo” de Pedro, então estamos bem longe do poder e da glória
mundana. E se Pedro esquecesse que o seu
testemunho fundamental é o do pecador perdoado, então, à imagem de Paulo em
Antioquia, profetas virão se opor a ele “de rosto aberto” (Gl 2,11)».
Eu
olho para o papa em silêncio e depois lhe pergunto:
PAPA FRANCISCO Passando pela Porta Santa na Celebração de Encerramento do Ano Jubilar da Misericórdia Basílica de São Pedro (Vaticano), 20 de novembro de 2016 |
O
Papa: a Igreja é o Evangelho
Santo
Padre, o que significou para o senhor este Ano de Misericórdia?
Papa Francisco: Quem descobre que é muito
amado começa a sair da solidão ruim, da separação que leva a odiar os outros e
a si mesmo. Espero que muitas pessoas
tenham descoberto que são muito amadas por Jesus e tenham se deixado abraçar
por Ele. A misericórdia é o nome de Deus e é também a Sua fraqueza, o Seu
ponto fraco. A Sua misericórdia O leva
sempre ao perdão, a se esquecer dos nossos pecados. Eu gosto de pensar que
o Onipotente tem uma péssima memória. Uma vez que Ele perdoa você, Ele se
esquece. Porque é feliz em perdoar. Para mim, isso basta. Assim como para a
mulher adúltera do Evangelho "que muito amou". "Porque Ele muito
amou." Todo o cristianismo está aqui.
Mas
foi um Jubileu sui generis, com
muitos gestos emblemáticos...
Papa Francisco: Jesus não pede grandes
gestos, mas apenas o abandono e o
reconhecimento. Santa Teresa de
Lisieux, que é doutora da Igreja, na sua "pequena via" para Deus,
indica o abandono da criança, que adormece sem reservas entre os braços do seu
pai, e lembra que a caridade não pode permanecer fechada no fundo. Amor a Deus e amor ao próximo são dois
amores inseparáveis.
Foram
realizadas as intenções pelas quais o senhor o havia convocado?
Papa Francisco: Mas eu não fiz um plano. Eu
simplesmente fiz aquilo que o Espírito Santo me inspirava. As coisas vieram. Eu
me deixei levar pelo Espírito. Tratava-se somente de ser dócil ao Espírito
Santo, de deixar que Ele fizesse. A
Igreja é o Evangelho, é a obra de Jesus Cristo. Não é um caminho de ideias, um
instrumento para afirmá-las. E, na Igreja, as coisas entram no tempo quando
o tempo está maduro, quando ele se oferece.
Foi
também um Ano Santo extraordinário...
Papa Francisco: Foi um processo que
amadureceu no tempo, por obra do Espírito Santo. Antes de mim, houve São João XXIII que, com a Gaudet mater Ecclesia, no "remédio
da misericórdia", indicou o caminho a seguir na abertura do Concílio;
depois, o Bem-aventurado Paulo VI,
que, na história do Samaritano, viu o seu paradigma. Depois, houve o
ensinamento de São João Paulo II,
com a sua segunda encíclica, Dives in
misericordia, e a instituição da Festa da Divina Misericórdia. Bento XVI disse que "o nome de Deus é misericórdia".
São todos pilares. Assim, o Espírito leva em frente processos na Igreja, até o
cumprimento.
Portanto,
o Jubileu também foi o Jubileu do Concílio, hic
et nunc, em que o tempo da sua recepção e o tempo do perdão coincidem...
Papa Francisco: Fazer a experiência vivida
do perdão que abarca a família humana inteira é a graça que o ministério
apostólico anuncia. A Igreja existe
somente como instrumento para comunicar às pessoas o desígnio misericordioso de
Deus. No Concílio, a Igreja sentiu a responsabilidade de estar no mundo
como sinal vivo do amor do Pai. Com a Lumen
gentium, ela voltou para as fontes da sua natureza, ao Evangelho. Este desloca o eixo da concepção cristã de
um certo legalismo, que pode ser ideológico, à Pessoa de Deus que se fez
misericórdia na encarnação do Filho. Alguns – ele pensa em certas respostas
à Amoris laetitia – continuam não
compreendendo, ou branco ou preto, mesmo que seja no fluxo da vida que se deve discernir. O Concílio nos disse isso.
Os historiadores, porém, dizem que um Concílio, para ser bem absorvido pelo
corpo da Igreja, precisa de um século... Nós estamos na metade.
Servir
os pobres é servir Cristo
Neste
tempo, todavia, são significativos os encontros e as viagens ecumênicas
empreendidas. Em Lesbos, com o
Patriarca Bartolomeu e Jerônimo, em Cuba
com o Patriarca de Moscou, Kirill, em Lund
para a comemoração conjunta da Reforma Luterana. Foi o Ano da Misericórdia que
favoreceu todas essas iniciativas com as outras Igrejas cristãs?
Papa Francisco: Eu não diria que esses
encontros ecumênicos são o fruto do Ano da Misericórdia. Não. Mesmo porque todos eles fazem parte de um percurso que vem
de longe. Não é uma coisa nova. São apenas passos a mais, ao longo de um
caminho que iniciou há muito tempo. Desde que foi promulgado o decreto
conciliar Unitatis redintegratio,
mais de 50 anos atrás, e se redescobriu a fraternidade cristã baseada no único
batismo e na mesma fé em Cristo, o caminho na estrada da busca da unidade
seguiu em frente com passos pequenos e grandes, e deu os seus frutos. Eu
continuo seguindo esses passos.
Os
passos dados pelos seus antecessores...
Papa Francisco: Todos aqueles que foram dados
pelos meus antecessores. Assim como um passo a mais foi aquela conversa do Papa
Luciani com o metropolita russo Nikodim, que morreu em seus braços, e, abraçado
ao irmão bispo de Roma, Nikodim lhe disse coisas tão bonitas sobre a Igreja.
Lembro-me do funeral de São João Paulo II. Estavam todos os chefes das Igrejas
do Oriente: essa é a fraternidade. Os
encontros e também as viagens ajudam essa fraternidade, a fazê-la crescer.
O
senhor, porém, em menos de quatro anos, se encontrou com todos os primazes e os
responsáveis das Igrejas cristãs. Esses encontros atravessam o seu pontificado.
Por que essa aceleração?
Papa Francisco: É o caminho do Concílio, que segue em frente, se intensifica. Mas é o caminho, não sou
eu. Esse caminho é o caminho da Igreja. Eu encontrei os primazes e os
responsáveis, é verdade, mas também os meus outros antecessores fizeram os seus
encontros com esses ou outros responsáveis. Eu não dei nenhuma aceleração. Na medida em que seguimos em frente, o
caminho parece ir mais rápido, é o motus
in fine velocior, para usar a expressão segundo aquele processo expressado
na física aristotélica.
Como
o senhor vive pessoalmente essa solicitude nos encontros com os irmãos das
outras Igrejas cristãs?
Papa Francisco: Eu a vivo com muita
fraternidade. A fraternidade se sente. Há
Jesus no meio. Para mim, são todos irmãos. Abençoamo-nos uns aos outros, um
irmão abençoa o outro. Quando fomos com o Patriarca Bartolomeu e Jerônimo para Lesbos, na Grécia, para encontrar os
refugiados, sentimo-nos uma coisa só. Éramos um. Um. Quando eu fui ao encontro
do Patriarca Bartolomeu no Fanar de Istambul
para a festa de Santo André, para mim, foi uma grande alegria. Na Geórgia, eu me encontrei com o Patriarca
Ilia, que não tinha ido para Creta para o Concílio ortodoxo. A sintonia
espiritual que eu tive com ele foi profunda. Eu me senti diante de um santo, um
homem de Deus pegou a minha mão, me disse coisas bonitas, mais com os gestos do
que com as palavras. Os patriarcas são
monges. Você vê por trás de uma conversa que eles são homens de oração. Kirill
é um homem de oração. Também o patriarca copta Twadros, que eu encontrei,
entrando na capela, tirava os sapatos e ia rezar. O Patriarca Daniel da
Romênia, há um ano, me presenteou um livro em espanhol sobre São Silvestre do
Monte Athos. Eu lia a vida desse grande monge ainda em Buenos Aires: "Rezar pelos homens é derramar o
próprio sangue". Os santos nos unem dentro da Igreja, atualizando o
seu mistério. Com os irmãos ortodoxos,
estamos a caminho, somos irmãos, nos amamos, nos preocupamos juntos, eles vêm
estudar entre nós e conosco. Bartolomeu também estudou aqui.
PAPA FRANCISCO & BARTOLOMEU I Em Assis (Itália), no Encontro Internacional e Inter-religioso pela Paz Terça-feira, 20 de setembro de 2016 |
Com
o Patriarca Ecumênico Bartolomeu, sucessor do apóstolo André, vocês já deram
muitos passos juntos, em plena sintonia nos pronunciamentos recíprocos.
Sustenta-os nisso o amor que transformou a vida dos Apóstolos Pedro e André que
eram irmãos...
Papa Francisco: Em Lesbos, enquanto
cumprimentávamos a todos juntos, havia um menino ao qual eu tinha me inclinado.
Mas eu não interessava ao menino, ele olhava para trás de mim. Eu me viro e
vejo por quê: Bartolomeu tinha os bolsos cheios de balas e as estava dando às
crianças. Esse é Bartolomeu, um homem
capaz de levar em frente, entre tantas dificuldades, o Grande Concílio
ortodoxo, de falar de teologia de alto nível e de estar simplesmente com as
crianças. Quando ele vinha para Roma, ele ocupava, em Santa Marta, o quarto
onde eu estou agora. A única crítica que ele me fez é que ele teve que mudar de
quarto.
O
senhor continua se encontrando com frequência com os chefes das outras Igrejas.
Mas o bispo de Roma não deve se ocupar em tempo integral da Igreja Católica?
Papa Francisco: O próprio Jesus reza ao Pai para pedir que os seus sejam uma coisa só, para que assim o mundo
creia. É a Sua oração ao Pai. Desde sempre, o bispo de Roma é chamado a conservar, a buscar e servir essa unidade.
Sabemos também que não podemos curar por nós mesmos as feridas das nossas
divisões, que dilaceram o corpo de Cristo. Portanto, não podem ser impostos
projetos ou sistemas para voltarmos a estar unidos. Para pedir a unidade entre nós, cristãos, só podemos olhar para Jesus e
pedir que o Espírito Santo opere entre nós. Que seja Ele que faça a
unidade. No encontro de Lund [Suécia]
com os luteranos, eu repeti as palavras de Jesus, quando diz aos seus
discípulos: "Sem mim, vocês não
podem fazer nada".
Que
significado teve o fato de comemorar com os luteranos na Suécia os 500 anos da
Reforma? Foi uma "fuga para a frente" da sua parte?
Papa Francisco: O encontro com a Igreja
Luterana em Lund foi um passo a mais
no caminho ecumênico que iniciou há 50 anos e em um diálogo teológico
luterano-católico que deu os seus frutos com a Declaração Comum, assinada em 1999, sobre a doutrina da Justificação, isto é, sobre como Cristo nos torna justos salvando-nos com a Sua Graça
necessária, ou seja, o ponto a partir do qual tinham partido as reflexões
de Lutero. Portanto, voltar ao essencial
da fé para redescobrir a natureza daquilo que nos une. Antes de mim, Bento
XVI tinha ido para Erfurt e ele tinha
falado cuidadosamente sobre isso, com muita clareza. Ele tinha repetido que a
pergunta sobre "como eu posso ter um Deus misericordioso?" tinha
penetrado no coração de Lutero e estava por trás de toda a sua busca teológica
e interior. Houve uma purificação da
memória. Lutero queria fazer uma reforma que devia ser como um remédio.
Depois, as coisas se cristalizaram, se
misturaram aos interesses políticos da época, e acabou-se no cuius regio eius religio, pelo qual era preciso seguir a confissão religiosa de
quem tinha o poder.
PAPA FRANCISCO Participa de celebração na Catedral Luterana de Lund - Suécia Segunda-feira, 31 de outubro de 2016 |
Ecumenismo?
Não barateio a doutrina, sigo o Concílio
Mas
há quem pense que, nesses encontros ecumênicos, o senhor queira “baratear” a
doutrina católica. Alguns disseram que se quer “protestantizar” a Igreja...
Papa Francisco: Isso não me tira o sono. Eu continuo no caminho de quem me precedeu, eu
sigo o Concílio. Quanto às opiniões, sempre é
preciso distinguir o espírito com o qual são ditas. Quando não há um mau
espírito, elas também ajudam a caminhar. Outras
vezes, logo se vê que as críticas são feitas aqui e ali para justificar uma
posição já assumida, não são honestas, são feitas com mau espírito para
fomentar divisão. Logo se vê que certos rigorismos nascem de uma falta, da
vontade de esconder dentro de uma armadura a própria triste insatisfação. Se
você assistir ao filme “A festa de
Babette”, há esse comportamento rígido. [Nós,
católicos, devemos utilizar estas palavras de Papa Francisco para podermos
discernir corretamente as opiniões que circulam dentro da Igreja! Inclusive,
aquelas que se originam de padres, bispos e cardeais... Afinal, todos podemos
estar dominados por ideologias e não pelo autêntico espírito do Evangelho e do
Concílio Vaticano II]
Com
os luteranos, também houve um forte apelo a trabalhar juntos por aqueles que se
encontram em estado de necessidade. Então, é preciso deixar de lado as questões
teológicas e sacramentais, e apontar apenas para o compromisso social e
cultural comum?
Papa Francisco: Não se trata de deixar de
lado algo. Servir aos pobres significa
servir a Cristo, porque os pobres são a carne de Cristo. E, se servimos aos pobres juntos, isso
significa que nós, cristãos, nos reencontramos unidos ao tocar as chagas de
Cristo. Eu penso no trabalho que, depois do encontro de Lund, a Cáritas e as organizações de
caridade luteranas podem fazer juntas. Não é uma instituição, é um caminho.
Certos modos de contrapor as "coisas da doutrina" às "coisas da
caridade pastoral", ao contrário, não estão de acordo com o Evangelho e
criam confusão.
A
comemoração conjunta de Lund marcou um momento de aceitação mútua e um nível de
compreensão recíproca profunda. Mas, a partir daí, como é possível resolver as
questões eclesiológicas ainda em aberto e também aquelas a respeito do
ministério e dos sacramentos, em particular da Eucaristia, que nos separam da
Igreja Luterana? Como é possível superar essas questões para se poder ir rumo a
uma unidade que seja visível para o mundo?
Papa Francisco: A Declaração Conjunta sobre a Justificação é a base para poder continuar o trabalho teológico. O estudo
teológico deve seguir em frente. Há o trabalho que está sendo feito pelo Pontifício Conselho para a Promoção da
Unidade dos Cristãos. O caminho
teológico é importante, mas sempre junto com o caminho de oração, fazendo,
juntos, obras de caridade. Obras que são visíveis.
PAPA FRANCISCO Abraça a o Patriarca Ortodoxo Russo Kirill Havana (Cuba), 12 de fevereiro de 2016 |
Ao
Patriarca de Moscou, Kirill, o senhor também disse que "a unidade se faz
caminhando", "a unidade não virá como um milagre no fim, caminhar
juntos já é fazer a unidade". O senhor repete isso muitas vezes. Mas o que
significa?
Papa Francisco: A unidade não se faz porque
nos colocamos de acordo entre nós, mas porque caminhamos seguindo Jesus. E caminhando por obra d’Aquele que seguimos,
podemos nos descobrir unidos. É o caminhar atrás de Jesus que une. Converter-se significa deixar que o Senhor
viva e opere em nós. Assim, descobrimos que nos encontramos unidos também
na nossa missão comum de anunciar o Evangelho. Caminhando e trabalhando juntos, damo-nos conta de que já estamos
unidos no nome do Senhor, e que, portanto, não somos nós que criamos a unidade.
Damo-nos conta de que é o Espírito que
nos impele e nos leva para a frente. Se você é dócil ao Espírito, será Ele que
irá lhe dizer o passo que pode dar. O resto é Ele quem faz. Não se pode ir
atrás de Cristo se Ele não o leva, se o Espírito não o impulsiona com a Sua
força. Por isso, é o Espírito o artífice
da unidade entre os cristãos. É por isso que eu digo que a unidade se faz a
caminho, porque a unidade é uma graça
que se deve pedir, e também porque eu repito que todo proselitismo entre
cristãos é pecaminoso. A Igreja nunca cresce por proselitismo, mas "por
atração", como escreveu Bento XVI. O
proselitismo entre os cristãos, portanto, é em si mesmo um pecado grave.
Por
quê?
Papa Francisco: Porque contradiz a própria dinâmica de como nos tornamos e permanecemos
cristãos. A Igreja não é um time de futebol que busca torcedores.
Então,
quais são os caminhos a serem tomados para a unidade?
Papa Francisco: Fazer processos em vez de
ocupar espaços é a chave também do caminho ecumênico. Neste momento histórico, a unidade se faz em três caminhos:
a) caminhar
juntos com as obras de caridade,
b) rezar
juntos e, depois,
c) reconhecer
a confissão comum assim como ela se expressa no martírio comum recebido no nome de Cristo, no ecumenismo do sangue.
Lá
se vê que o próprio Inimigo reconhece a nossa unidade, a unidade dos batizados.
O Inimigo não erra nisso. E essas são todas expressões de unidade visível.
Rezar juntos é visível. Fazer obras de caridade juntos é visível. O martírio
compartilhado no nome de Cristo é visível.
No
entanto, entre os católicos, ainda não parece ser tão viva uma sensibilidade
pela busca da unidade entre os cristãos e uma percepção da dor da divisão...
Papa Francisco: O encontro de Lund, assim como todos os outros passos
ecumênicos, também foi um passo à frente para levar a compreender o escândalo
da divisão, que fere o corpo de Cristo e que, também diante do mundo, não
podemos nos permitir. Como podemos dar
testemunho da verdade do amor se brigamos, se nos separarmos entre nós?
Quando eu era criança, não se falava com os protestantes. Havia um sacerdote em
Buenos Aires que, quando os evangélicos vinham rezar com as barracas, ele
mandava o grupo de jovens queimá-las. Agora, os tempos mudaram. O escândalo deve ser superado simplesmente
fazendo as coisas juntos, com gestos de unidade e de fraternidade.
Em
Cuba, quando o senhor se encontrou com o Patriarca Kirill, as suas primeiras
palavras foram: "Temos o mesmo batismo. Somos bispos".
Papa Francisco: Quando eu era bispo de
Buenos Aires, davam-me alegria todas as tentativas implementadas por tantos
sacerdotes para facilitar a administração dos batismos. O batismo é o gesto com o qual o Senhor nos escolhe, e, se reconhecemos
que estamos unidos no batismo, isso significa que estamos unidos naquilo que é
fundamental. Essa é a fonte comum que une todos nós, cristãos, e alimenta
todo possível passo novo nosso para voltar à plena comunhão entre nós. Para redescobrir a nossa unidade, não
devemos "ir além" do batismo. Ter o mesmo batismo significa confessar juntos que o Verbo se fez carne:
isso nos salva. Todas as ideologias e as teorias nascem daqueles que não
param nisso, que não permanecem na fé que reconhece Cristo que veio na carne, e
que querem "ir além". Daí nascem todas as posições que tiram da
Igreja a carne de Cristo, que "descarnam" a Igreja. Se olharmos juntos
para o nosso batismo comum também somos libertos da tentação do pelagianismo, que quer nos convencer de
que nos salvamos por nossa força, com os nossos ativismos. E permanecer no
batismo também nos salva da gnose.
Esta última desnaturaliza o cristianismo, reduzindo-o a um percurso de
conhecimento, que pode abrir mão do encontro real com Cristo.
O
Patriarca Bartolomeu, em um entrevista ao jornal Avvenire, disse que a raiz da divisão foi a penetração de um
"pensamento mundano" na Igreja. Para o senhor, essa também é a causa
da divisão?
Papa Francisco: Eu continuo pensando que o câncer na Igreja é o fato de se
glorificar uns aos outros. Se alguém não sabe quem é Jesus, ou nunca O
encontrou, sempre pode encontrá-Lo. Mas se
alguém está na Igreja e se move nela porque, precisamente no âmbito da Igreja,
cultiva e alimenta a sua fome de domínio e de autoafirmação, tem uma doença
espiritual, crê que a Igreja é uma realidade humana autossuficiente, em que
tudo se move de acordo com lógicas de ambição e poder. Na reação de Lutero,
também havia isto: a recusa de uma imagem de Igreja como uma organização que
podia seguir em frente abrindo mão da Graça do Senhor ou considerando-a como
uma posse descontada, garantida por antecipação. E essa tentação de construir uma Igreja autorreferencial, que leva à
contraposição e, depois, à divisão, sempre retorna. [Nossa referência é Cristo, vivemos por Ele, somos Igreja por
causa d’Ele, servimos a Ele na pessoa dos necessitados deste mundo! Todo o
resto é “conversa fiada” que não leva ao Reino de Deus, mas às ambições e
vaidades pessoais!]
Em
relação aos ortodoxos, frequentemente cita-se a chamada “fórmula Ratzinger”,
enunciada pelo teólogo que depois se tornou papa: aquela segunda a qual, “no que diz respeito ao primado do papa, Roma
deve exigir das Igrejas ortodoxas nada mais do que aquilo que foi estabelecido
e vivido no primeiro milênio”. Mas o que a perspectiva da Igreja do início
e dos primeiros séculos pode sugerir de essencial também no tempo presente?
Papa Francisco: Devemos olhar para o
primeiro milênio, ele sempre pode nos inspirar. Não se trata de voltar atrás de
maneira mecânica, não é simplesmente dar "marcha à ré": lá há
tesouros válidos também hoje. Antes eu falava da autorreferencialidade, o
hábito pecaminoso da Igreja de olhar demais para si mesma, como se acreditasse
que tem luz própria. O Patriarca Bartolomeu disse a mesma coisa ao falar de
"introversão" eclesial. Os
Padres da Igreja dos primeiros séculos tinham claro que a Igreja vive instante
por instante da Graça de Cristo. Por isso – eu já disse isto outras vezes –
diziam que a Igreja não tem luz própria e a chamavam de mysterium lunae, o mistério da lua. Porque a Igreja dá luz, mas não brilha com luz própria. E, quando a Igreja, em vez de olhar para
Cristo, olha demais para si mesma, vêm também as divisões. Foi o que
aconteceu depois do primeiro milênio. Olhar para Cristo nos liberta desse
hábito e também da tentação do triunfalismo e do rigorismo. E nos faz caminhar juntos na estrada da docilidade
ao Espírito Santo, que nos leva à unidade.
IOANNIS ZIZIOULAS Bispo Metropolitano da Igreja Ortodoxa Grega de Pérgamo Importante e renomado teólogo ortodoxo |
Em
diversas Igrejas ortodoxas, há resistência ao caminho rumo à unidade, como aquelas
que o Metropolita Ioannis Zizioulas define como “talibãs ortodoxos”. Algumas
resistências ainda podem existir também no lado católico. O que se deve fazer?
Papa Francisco: O Espírito Santo leva as
coisas a cumprimento, com os tempos que Ele estabelece. Por isso, não podemos
ficar impacientes, desencorajados, ansiosos. O caminho requer paciência para conservar e melhorar aquilo que já
existe, que é muito mais do que aquilo que divide. E testemunhar o Seu amor
por todas as pessoas, para que o mundo creia.
Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. A versão original
desta entrevista é acessível aqui.
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