Explicando melhor a vitória de Trump
As sete propostas de Trump que os grandes meios
censuraram... e que explicam a sua vitória
Ignacio
Ramonet
Toda a arquitetura mundial estabelecida ao final da
Segunda Guerra Mundial, se vê agora interrompida e colapsada. As cartas da
geopolítica serão embaralhadas novamente. Outra partida começa.
A
vitória de Donald Trump (como o
BREXIT[1] no Reino Unido ou a vitória
do “não” na Colômbia[2]) significa,
em primeiro lugar, uma nova estrepitosa derrota dos grandes meios dominantes e
dos institutos de pesquisa e das enquetes de opinião. Porém significa também
que toda a arquitetura mundial
estabelecida ao final da Segunda Guerra Mundial, se vê agora interrompida e
colapsada. As cartas da geopolítica serão embaralhadas novamente. Outra partida começa. Estramos em uma
era nova cujo traço determinante é “o desconhecido”. Agora tudo pode acontecer.
Como Trump conseguiu
reverter uma tendência que dava-o como perdedor e impor-se na reta final da
campanha?
Esta personagem atípica, com suas propostas grotescas e suas ideias
sensacionalistas, já havia desbaratado até agora todos os prognósticos. Frente
a pesos pesados como Jeb Bush, Marco Rubio ou Ted Cruz, que contavam inclusive com o resoluto apoio do establishment republicano, muito poucos o viam impor-se nas primárias
do Partido Republicano e, no entanto, carbonizou seus adversários, reduzindo-os
a cinzas.
Deve-se
entender que, desde a crise financeira
de 2008 (da qual ainda não saímos), nada
mais é igual em nenhuma parte do mundo. Os cidadãos estão profundamente
desencantados. A própria democracia, como modelo, perdeu credibilidade. Os sistemas políticos foram sacudidos até
as raízes. Na Europa, por exemplo, multiplicaram-se os terremotos
eleitorais (ente os quais, o Brexit).
Os grandes partidos tradicionais estão
em crise. E em toda parte, percebemos o aumento de formações de extrema direita (na França, na Áustria e
nos países nórdicos) ou de partidos
antissistema e anticorrupção
(Itália, Espanha). A paisagem política aparece radicalmente transformada.
Esse
fenômeno chegou aos Estados Unidos, um país que já conheceu, em 2010, uma onda populista devastadora, encarnada
então pelo Tea Party[3]. A irrupção do multimilionário Donald Trump
na Casa Branca prolonga aquela onda e constitui uma revolução eleitoral que
nenhum analista soube prever. Ainda que a velha tradição bicéfala entre
democratas e republicanos sobreviva nas aparências, a vitória de um candidato tão heterodoxo como Trump constitui um
verdadeiro abalo sísmico. Seu estilo direto, populista, e sua mensagem
maniqueísta e reducionista, apelando aos baixos instintos de certos setores da
sociedade, muito distinto do tom habitual dos políticos estadunidenses, lhe
conferiu um caráter de autenticidade aos olhos do setor mais decepcionado do
eleitorado da direita. Para muitos eleitores
irritados pelo “politicamente correto”, que acreditam que não mais se possa
dizer o que se pensa sob pena de ser acusado de racista, a “língua solta” de Trump sobre os latinos, os imigrantes ou os
muçulmanos é percebida como um autêntico desabafo.
A
esse respeito, o candidato republicano
soube interpretar o que poderíamos chamar de “rebelião popular”. Percebeu,
melhor que ninguém, a fratura cada vez
mais ampla entre as elites políticas, econômicas, intelectuais e
mediáticas, de um lado, e a base do
eleitorado conservador, de outro. Seu discurso violentamente
anti-Washington e anti-Wall Street seduziu, particularmente, os eleitores brancos, com baixo nível de escolaridade e empobrecidos pelos efeitos da globalização
econômica.
Deve-se
precisar que a mensagem de Trump não é semelhante a de um partido neofascista
europeu. Não é um ultradireitista convencional. Ele mesmo se define como um
“conservador com senso comum” e sua posição, no leque da política, se situaria
mais exatamente à direita da direita. Empresário multimilionário e estrela
arquipopular da realidade televisiva, Trump
não é um antissistema nem, obviamente, um revolucionário. Não censura o
modelo político em si, mas os políticos que o estavam pilotando. Seu discurso é
emocional e espontâneo. Apela aos
instintos, às “tripas”, não ao cérebro nem à razão. Fala para essa parte do
povo estadunidense entre a qual começou a se espalhar o desânimo e o
descontentamento. Dirige-se às pessoas
que estão cansadas da velha política, da “casta”. E promete injetar
honestidade no sistema; renovar nomes, rostos e atitudes.
CANDIDATOS À PRESIDÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOS PELO PARTIDO REPUBLICANO Donald Trump superou todos os tradicionais caciques e favoritos ao posto, sinal de descontentamento dos próprios membros do partido! |
Os meios de comunicação
deram grande divulgação a algumas de suas declarações e propostas mais odiosas,
absurdas ou grotescas. Recordemos, por exemplo, sua afirmação de que todos os imigrantes
ilegais mexicanos são “corruptos, delinquentes e estupradores”. O seu projeto
de expulsar os onze milhões de imigrantes ilegais latinos aos quais quer
colocar em ônibus e expulsar do país enviando-os ao México. Ou sua proposta,
inspirada em Game of Thrones[4], de construir um muro fronteiriço de 3.145
quilômetros ao longo de vales, montanhas e desertos para impedir a entrada de
imigrantes latino-americanos e cujo orçamento de 21 bilhões de dólares seria
financiado pelo governo do México. Nessa mesma ordem de ideias, também anunciou
que proibiria a entrada a todos os imigrantes muçulmanos... E atacou com
veemência os pais de um militar estadunidense de confissão muçulmana, Humayun
Khan, morto em combate no Iraque em 2004.
Também
[teve destaque] a sua afirmação de que o
matrimônio tradicional, formado por um homem e uma mulher, é “a base de uma
sociedade livre”, e sua crítica à decisão da Suprema Corte de considerar
que o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo é um direito constitucional. Trump
apoia as chamadas “leis de liberdade religiosa”, impulsionadas pelos
conservadores em vários estados para negar serviços às pessoas LGBT. Sem
esquecer suas declarações sobre a “fraude”
da mudança climática que, segundo Trump, é um conceito “criado por e para
os chineses, para fazer que o setor manufatureiro norte-americano perca
competitividade”.
Este
catálogo de futilidades terríveis e detestáveis foi, repito, massivamente
difundido pelos meios dominantes não somente nos Estados Unidos, mas também no
resto do mundo. E a principal pergunta
que muita gente se fazia era: como é possível que uma personagem com tão
lamentáveis ideias consiga uma audiência tão considerável entre os eleitores
norte-americanos, os quais, obviamente, não podem estar todos lobotomizados?[5] Algo não se
encaixava.
Para
responder a essa pergunta, tivemos que fender a muralha informativa e analisar mais de perto o programa completo do candidato republicano e
descobrir os sete pontos fundamentais
que defende, silenciados pelos grandes meios de comunicação:
1º) Os jornalistas não lhe perdoam,
primeiramente, que ataque de frente o poder mediático. Censuram-no de
constantemente incentivar o público nos comícios a vaiar a imprensa “desonesta”. Trump costuma afirmar: “Não estou
competindo contra Hillary Clinton, estou competindo contra os corruptos meios
de comunicação”[6]. Em um tweet recente, por exemplo, escreveu:
“Se os repugnantes e corruptos meios de comunicação me cobrissem de forma
honesta e não injetassem significados falsos às palavras que digo, estaria
ganhando de Hillary com 20% [de vantagem]”.
Por
considerar injusta ou tendenciosa a cobertura mediática, o candidato
republicano não teve dúvidas em retirar as credenciais de imprensa para cobrir
seus atos de campanha a vários meios importantes, entre os quais: The Washington Post, Politico, The Huffington Post e BuzzFeed.
E até se atreveu a atacar a Fox News,
a grande cadeia do direitismo panfletário, embora o apoie completamente como
candidato favorito...
2º) Outra razão pela qual os grandes meios de comunicação atacaram
brutalmente a Trump é porque denuncia a
globalização econômica, convencido de que esta acabou com a classe média. Segundo ele, a economia globalizada está falhando cada vez mais com as pessoas e
recorda que, nos últimos quinze anos,
mais de 60.000 fábricas tiveram que fechar nos Estados Unidos e quase cinco milhões de empregos industriais
bem pagos desapareceram.
Este jornal de Nova York traz em sua manchete do dia 10 de fevereiro de 2016: "Alvorecer do cérebro morto" |
3º) É um fervoroso protecionista. Propõe aumentar as taxas sobre todos os
produtos importados. “Vamos recuperar o controle do país, faremos que os
Estados Unidos volte a ser um grande país”, costuma afirmar, retomando seu
slogan de campanha.
Partidário
do Brexit, Donald Trump declarou que,
uma vez eleito presidente, tratará de retirar os Estados Unidos do Tratado de Livre Comércio da América do
Norte (NAFTA na sigla em inglês). Também criticou o Acordo de Associação Transpacífico (TPP na sigla em inglês), e
assegurou que, ao alcançar a presidência, retirará o país do mesmo: “O TPP
seria um golpe mortal para a indústria manufatureira dos Estados Unidos”.
Em
regiões como o rust belt, o “cinturão
da ferrugem” do noroeste, onde as transferências e o fechamento de fábricas
deixaram altos níveis de desemprego e de pobreza, esta mensagem de Trump está
calando fundo.
4º) Assim como sua rejeição aos
cortes neoliberais em matéria de seguridade social. Muitos eleitores
republicanos, vítimas da crise econômica de 2008 ou que têm mais de 65 anos,
necessitam beneficiar-se da Social
Security (aposentadoria) e do Medicare
(seguro saúde) que desenvolveu o presidente Barack Obama e que outros líderes
republicanos desejam suprimir. Trump
prometeu não tocar nestes avanços sociais, bem como, baixar o preço dos medicamentos, ajudar a resolver os problemas dos “sem teto”, reformar a tributação dos pequenos contribuintes e suprimir o imposto federal que afeta a
73 milhões de lares modestos.
5º) Contra a arrogância de Wall
Street[7], Trump propõe
aumentar significativamente os impostos dos corretores de hedge funds que ganham fortunas e apoia o restabelecimento da Lei Glass-Steagall. Aprovada em 1933,
em plena Depressão, esta Lei separou o banco tradicional do banco de
investimentos com o objetivo de evitar que o primeiro pudesse fazer
investimentos de alto risco. Obviamente,
todo o setor financeiro se opõe absolutamente ao restabelecimento desta medida.
6º) Em política internacional, Trump
quer estabelecer uma aliança com a Rússia para combater com eficácia ao Estado
Islâmico (ISIS em sua sigla em inglês). Ainda que, para isso, Washington
tenha de reconhecer a anexação da Crimeia por Moscou.
7º) Trump estima que, com sua enorme dívida soberana, Estados Unidos não
mais disponha dos recursos necessários para levar a cabo uma política exterior
intervencionista indiscriminada. Não podem mais impor a paz a qualquer preço. Diversamente que vários caciques de seu
partido, e como consequência lógica do final da Guerra Fria, quer mudar a OTAN:
“Não haverá nunca mais garantia de uma proteção automática dos Estados Unidos
para os países da OTAN”.
Distrito Financeiro de Wall Street em Nova York À direita se vê a fachada do prédio da Bolsa de Valores |
Todas estas propostas não
invalidam, absolutamente, as inaceitáveis, odiosas e, às vezes, nauseabundas
declarações do candidato republicano difundidas com grande alarde pelos grandes meios de
comunicação dominantes. Porém explicam
melhor, com certeza, o porquê de seu êxito.
Em 1980, a inesperada vitória de Ronald Reagan nas eleições
presidenciais dos Estados Unidos fez com que o planeta entrasse em um ciclo de quarenta anos de neoliberalismo e de
globalização financeira. Hoje, a vitória de Donald Trump pode fazer-nos
entrar em um novo ciclo geopolítico cuja perigosa característica ideológica
principal – que vemos surgir por todas as partes e em particular na França com
Marine Le Pen – é o “autoritarismo identitário”. Um mundo desmorona, portanto,
e dá vertigem...
N O T A S
[ 1 ] BREXIT
é a abreviação das palavras em inglês Britain
(Grã-Bretanha) e exit (saída).
Designa a saída do Reino Unido da União Europeia.
[ 2 ] De maneira surpreendente, o "não"
se impôs, no dia 2 de outubro de 2016, ao "sim" na Colômbia, por uma
diferença de apenas 54 mil votos (50,2% a 49,8%), e fez naufragar nas urnas o
acordo de paz assinado entre o governo e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), de maneira
festiva e com a presença de vários chefes de Estado da América Latina, na
segunda-feira anterior (26 de setembro de 2016).
[ 3 ] TEA
PARTY (em inglês: Tea Party movement, às vezes traduzido como Partido do Chá) é um movimento social e político populista,
conservador, ultradireitista. Este grupo político trata-se de uma ala radical
do Partido Republicano dos Estados Unidos e não é considerado um partido em si
apesar de contar com a adesão de boa parte dos Republicanos. O movimento surgiu
a partir de uma série de protestos coordenados, tanto no nível local como
nacional, que se realizaram a partir do início de 2009. Os protestos foram, em
parte, motivados por diversas leis federais, como o Plano de resgate econômico de 2008, a Lei de Recuperação e Reinvestimento dos Estados Unidos de 2009 e a Lei de Proteção ao Paciente e Assistência
Médica Acessível (reforma do sistema de saúde, popularmente conhecida como
"Obamacare"). O movimento defende uma política fiscal conservadora e
o originalismo,
isto é, a interpretação do texto constitucional segundo o seu significado à
época em que foi adotado. De acordo com diversas pesquisas de opinião, cerca de
10% dos norte-americanos consideram-se parte do movimento (Fonte: aqui).
[ 4 ] GAME
OF THRONES (trad.: A
Guerra dos Tronos) é uma série de televisão norte-americana criada por
David Benioff e D. B. Weiss para a HBO. A série é baseada na série de livros As Crônicas de Gelo e Fogo (A Song of Ice and Fire no original),
escritos por George R. R. Martin, com seu título sendo derivado do primeiro
livro. Game of Thrones está sendo filmada principalmente no Paint Hall Studios, em Belfast, e em
outras localizações na Irlanda do Norte, Espanha, Navarra, Marrocos, Malta,
Croácia e Islândia (Fonte: aqui).
[ 5 ] Lobotomizado é uma pessoa
submetida à lobotomia, uma intervenção
cirúrgica no cérebro na qual são seccionadas as vias que ligam as regiões
pré-frontais e o tálamo, usada no passado em casos graves de esquizofrenia;
leucotomia. A técnica, criada em 1933 pelo médico português A. Egas Moniz
(1874-1955), que recebeu por isto o Prêmio Nobel em 1949, encontra-se
atualmente em desuso (Fonte: Dicionário eletrônico Houaiss da língua
portuguesa, versão 3.0).
[ 6 ] Frase
proferida no comício do dia 13 de agosto em Fairfield (Connecticut).
[ 7 ] Wall Street
é uma rua que corre na Manhattan Inferior, e é considerada o coração histórico
do atual Distrito Financeiro da cidade de Nova York, onde se localiza a bolsa
de valores de Nova York e a sede de vários dos maiores bancos e corretoras de
valores dos Estados Unidos e do mundo. Portanto, ao se falar em Wall Street, quer se referir a todo o mundo das finanças atuais.
Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.
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