O papel da mulher na Igreja

As armadilhas de uma teologia de gênero

Natalia Imperatori-Lee
Professora adjunta de Religião no Manhattan College, em Nova York
America Magazine
04-11-2016

Defender uma construção Mariana e Petrina da Igreja é uma dualidade complementar masculino/feminino, o que é profundamente problemático por razões científicas, sociopolíticas e, principalmente, teológicas
NATALIA IMPERATORI-LEE

Uma coisa que todos podem concordar a respeito do Papa Francisco é que suas conferências de imprensa dão o que falar. Esta semana não foi diferente. Perguntado sobre a ordenação de mulheres, o Papa recordou a afirmação de São João Paulo II da impossibilidade da ordenação de mulheres para o sacerdócio como uma questão final, resolvida. Joshua McElwee, do National Catholic Reporter, relata que Francisco declarou:

«Mas as mulheres podem fazer muitas outras coisas melhor do que os homens», continuou o Papa, antes de repetir as observações que ele já havia feito sobre as duas dimensões da Igreja Católica: a Petrina, dimensão apostólica liderada pelos bispos, e a Mariana, que ele considerou como a «dimensão feminina da Igreja».

Mais preocupante do que a questão sobre se as mulheres podem participar do ministério sacramental da Igreja, como sacerdotes, é a infiltração de tal eclesiologia de gênero nos mais altos escalões da hierarquia da Igreja. Esta linguagem das dimensões mariana e petrina tem duas fontes primárias. A noção de que a Igreja é a noiva de Cristo tem raízes bíblicas, é claro. Ela vem dos Evangelhos e das Cartas de São Paulo, e é desenvolvida no livro do Apocalipse. A associação desta metáfora com as dimensões Mariana e Petrina da Igreja, no entanto, vem de um teólogo que era um dos favoritos de São João Paulo II e do Papa Bento XVI, um antigo jesuíta suíço chamado Hans Urs von Balthasar. Embora ele seja conhecido por suas contribuições para a estética teológica, muitos teólogos discordam de sua linguagem de gênero para descrever a Igreja como uma realidade em que masculino e feminino são complementares, onde Maria e Jesus, ou Maria e Pedro, correspondem a dimensões separadas na Igreja.

Para Balthasar, a dimensão petrina gira em torno da liderança e da iniciativa, enquanto a dimensão mariana tem mais a ver com a receptividade e a fecundidade – e estas distinções estão enraizadas nas distinções biológicas de homens e mulheres. Na verdade, ele considera a diferença nos órgãos genitais entre homens e mulheres como a base para muitas das características de sua visão complementarista da humanidade e, por extensão, da Igreja. Juntamente com a metáfora conjugal (a Igreja como a "noiva" de Cristo), esta complementaridade também coloca os leigos em um papel Mariano, e o clero e a hierarquia, no Petrino, o que pode ser problemático, uma vez que está ligado à passividade e à submissão do princípio "Mariano" (leigos) ao Petrino (clero).

Para citar apenas um exemplo de sua ideologia, em seu principal trabalho, Teo-Drama, Balthasar descreve a mulher como "a resposta do homem" e o "navio de sua realização". Os homens não são definidos em relação às mulheres, mas como os seres que levantam questões e iniciam a frutificação. Ao colocar a diferença sexual como a mais significativa entre os seres humanos (e não, por exemplo, idade, raça ou etnia, ou qualquer uma das várias outras diferenças que vemos na humanidade), a visão de Balthasar da complementaridade marca toda a sua eclesiologia e lança homens e mulheres em papéis específicos e rígidos.
MULHER SENTADA NO PAVIMENTO DA PRAÇA DE SÃO PEDRO NO VATICANO

Nossa humanidade completa

Claro, nossa tradição está repleta de linguagem sexual para Deus, e de entendimentos complementaristas de Deus e da humanidade. Mas esta não é a única maneira de pensar a Igreja. Teólogos, citando as Escrituras, têm considerado a Igreja como um "Corpo místico", "Povo de Deus" e "Sacramento de salvação".

As observações do Papa Francisco, no entanto, deram eco ao entendimento de Balthasar sobre a Igreja como uma dualidade complementar masculino/feminino, o que é profundamente problemático por razões: científicas, sociopolíticas e, principalmente, teológicas.

1. Razões científicas
A ciência descobriu que a biologia sexual de uma pessoa é muito mais complexa do que os órgãos sexuais visíveis em seu corpo. Os genes e hormônios da corrente sanguínea afetam o desenvolvimento e a expressão do sexo "biológico" de uma pessoa. Algumas mulheres e alguns homens têm três cromossomos (XXY); outros têm órgãos sexuais femininos, mas apresentam mais hormônios sexuais masculinos do que femininos. Tudo isso para explicar que a biologia humana é infinitamente mais complexa do que as frases "É um menino!" ou "É uma menina!", de pais de bebês (ou médicos e parteiras), possam nos levar a crer. Cientificamente, e mesmo biologicamente, há muitos fatores que contribuem para a "masculinidade" e a "feminilidade". Qualquer alegação de que existem apenas dois tipos de seres humanos, homens e mulheres, é simplista. Da mesma forma, mesmo que a "feminilidade" tenha a biologia como base, o que conta como "feminino" é culturalmente construído e varia ao longo do tempo e do espaço. Para uma determinada comunidade, a feminilidade pode estar relacionada à timidez e à discrição; para outra, uma pessoa que chama a atenção por sua beleza e usa maquiagem e roupas chamativas pode ser vista como alguém muito feminino.

2. Razões sociopolíticas
Sociopoliticamente, a complementaridade rígida ilude homens e mulheres em relação à sua plena humanidade. Ao pressupor que as mulheres têm o que falta nos homens, ou vice-versa, reforçam-se estereótipos de masculinidade e feminilidade através da imposição dos pontos fortes e fracos que as pessoas devam ter se forem fiéis a seus gêneros. Esta ideologia vê todos os homens e todas as mulheres como iguais, em vez de considerar a variedade de pessoas que encontramos diariamente. A nossa experiência humana contradiz a afirmação de que todos os homens são agressivos ou que todas as mulheres são emotivas demais. Como mãe de dois filhos, posso garantir que cada ser humano é diferente do outro em interesses, habilidades e talentos e que os meus meninos são mais diferentes do que iguais – mesmo que tenham advindo da mesma carga genética e tenham tido a mesma criação! Também pode-se afirmar, pela nossa experiência com os outros, que nem todos os homens e mulheres se encaixam nesse molde complementar, e que as relações humanas são infinitamente mais complexas do que o "ela me completa". No mínimo, as relações humanas são baseadas em reciprocidades que mudam ao longo do tempo.

Nas esferas sociais e políticas, também vemos os danos causados aos meninos aos quais não se permite – ou não se incentiva – a expressão de outros sentimentos senão a raiva, e às meninas que são taxadas de mandonas por serem proativas, ou, pior, por se defender de agressões. Os estereótipos sexuais, portanto, não prejudicam apenas as mulheres, mas cerceiam as possibilidades dos homens também.

Na Igreja, o pensamento complementarista defendido pelos últimos papas, incluindo Francisco, afirma que as mulheres têm dons cruciais para a Igreja, mas que estes dons complementam os dos homens, que incluem, presume-se, os carismas necessários para a ordenação. O Papa Francisco leva isso um passo adiante, colocando as mulheres em um pedestal quando afirma que o princípio mariano na Igreja é mais importante do que o petrino, porque, como mãe de Deus, Maria é mais significativa na história da salvação do que os discípulos de Jesus.

3. Razões teológicas
Duas coisas chamam a atenção do ponto de vista teológico. Primeiro, a mãe de Jesus não é a única mulher no Novo Testamento. Maria Madalena, Marta e Maria, assim como tantas outras, também estavam no círculo de discípulos de Jesus, ouvindo-o e, no caso de Marta, prestando assistência a ele. Maria Madalena foi a primeira testemunha da ressurreição nos Evangelhos. As mulheres da igreja primitiva não podem ser resumidas à Virgem Maria; a Igreja deve nomeá-las e conhecer as suas histórias, pois até mesmo essas primeiras narrativas revelam que nem todas as mulheres expressam feminilidade da mesma forma (Marta e Maria são brilhantes exemplos deste fato).

Em segundo lugar, designar um papel feminino à Igreja e atribuir a obediência (como na sanção de Maria) e a receptividade apenas à sua esfera feminina, em oposição ao aspecto petrino e clerical, significa que o papel dos leigos é a obediência e a receptividade. Será que isso vai ao encontro da eclesiologia do Concílio Vaticano II, que diz em "Lumen Gentium" que todo o povo de Deus é chamado a cuidar da Igreja? Se a liderança é apenas petrina, e isso se relaciona apenas ao clero, alguns homens na Igreja se veem na esfera masculina da Igreja enquanto outros (na laicidade) se colocam na esfera feminina. Mas o inverso é impossível: como as mulheres não podem ser ordenadas, elas só podem se identificar com a esfera feminina. Isto exclui a liderança das mulheres em uma Igreja que celebra Teresa de Ávila, Sóror Juana Inés de la Cruz e Catarina de Sena como modelos de fé.

Papa Francisco pode ter descartado ou não a possibilidade de ver mulheres sacerdotes na Igreja Católica, no avião, em seu retorno da Suécia esta semana. Mas ao reafirmar a construção Mariana e Petrina da Igreja, a mensagem do Papa sobre o povo de Deus, intencionalmente ou não, tolhe a nossa imaginação e limita nossas possibilidades de desenvolvimento humano integral. E isso é um problema maior do que quem deve ficar aos pés do altar.

Traduzido do inglês por Luísa Flores Somavilla. Acesse a versão original deste artigo, clicando aqui.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias  – Terça-feira, 8 de novembro de 2016 – Internet: clique aqui.

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