OS POBRES... SEMPRE ELES!
“Os pobres pagarão pelo triunfo do
populismo global”
Entrevista
com Bernard-Henri Lévy
Filósofo, jornalista e escritor francês
Francesca Paci
Jornal “La
Stampa” – Turim (Itália)
13-11-2016
Um convite a não subestimar o potencial destrutivo de
Trump,
especialmente agora que ele foi eleito.
Uma advertência contra a “Internacional
Populista”
Jornalista,
escritor, filósofo, animador do debate político assim como da mundanidade
francesa, mas, principalmente, epígono do intelectual "engagée" na era do desengajamento e
da revolta contra as elites, Bernard-Henri
Lévy traça um mapa em que o Ocidente catalisa tensões, frustrações, acertos de
contas com a história.
Eis
a entrevista.
Comecemos
com Trump: o que devemos esperar?
Bernard-Henri
Lévy: O
pior. Ou seja, que ele fará o que puder para aplicar o seu programa. As pessoas
dizem: "Agora que ele foi eleito,
ele vai se acalmar, vai colocar água no vinho, vai se deixar digerir pelo
sistema". Eu não acredito nisso.
Eu acho que ele vai tentar, tanto quanto possível, fazer aquilo que ele disse.
Que
valores expressa essa votação?
Bernard-Henri
Lévy: O
desprezo pela democracia. A lei da telerrealidade aplicada à política. E, como
se não bastasse, uma espécie de
darwinismo social, em que os mais fracos vão pagar o preço. Eu li que quem
elegeu Trump foram os desclassificados, os marginalizados da globalização, os
humilhados. Entretanto, isso não é verdade, porque a maioria dos negros – a
minoria por excelência da qual provêm esses excluídos – votaram em Clinton.
Mas, principalmente, se Trump mantiver
as suas promessas em matéria fiscal ou de proteção social, quem vai sofrer com
isso são os estadunidenses mais pobres.
Não
é um voto de protesto contra as elites?
Bernard-Henri
Lévy: Não. É um voto contra a República. Contra a igualdade e o respeito pelas
minorias. Contra Tocqueville [1] e a sua definição da América. Assistimos a
uma autêntica tentativa de suicídio dentro daquela grande democracia que é a
democracia estadunidense.
Qual
é a agenda de Trump para a Europa?
Bernard-Henri
Lévy: Na
melhor das hipóteses, ele não dá a mínima para a Europa. Na pior, ele acredita
que é hora de renegociar os termos da Otan. Em ambos os casos, a sua eleição é
uma péssima notícia, e, em ambos os casos, sob a sua presidência, os Estados Unidos vão virar as costas às
suas raízes europeias.
A
chanceler Merkel felicitou Trump, mas lhe recordou o respeito pelos direitos
humanos. É a abordagem correta?
Bernard-Henri
Lévy: Merkel
expressou dois medos. O primeiro
é que os Estados Unidos caiam no isolacionismo
e renunciem a defender a democracia
no resto do mundo. O segundo é que, nos próprios Estados
Unidos, haja uma regressão em relação às
batalhas históricas pelos direitos civis que, há 50 anos, lhe honram. A
reação de Merkel é a de uma amiga dos Estados Unidos que vê os Estados Unidos
atirarem contra o próprio pé.
A
Europa está unida nisso ou vai se dividir ainda mais?
Bernard-Henri
Lévy: Há um
novo tipo de regime na Europa, as "démocratures",
uma mistura de democracia e ditadura.
É o caso do populismo autoritário de
Victor Orban na Hungria. Esse tipo de
pessoas, obviamente, se alegra com Trump. Assim como Marine Le Pen, na França, foi a primeira a se felicitar. Há uma nova Internacional, uma espécie de
Internacional vermelha e preta, ou preta e vermelha, que já vê em Trump o
seu arauto. Entre aqueles que saudaram o
advento da Trump está:
a)
a extrema direita, mas também toda
aquela
b) parte
da extrema esquerda seguidora de
pessoas como Slavoj Žižek [2],
convicta de que o verdadeiro perigo era Hillary Clinton.
Você
acha que devemos nos preocupar diante da lista daqueles que aplaudem Trump?
Erdogan, al-Sisi, Orban, Le Pen, Grillo na Itália...
Bernard-Henri
Lévy: Sim.
É a "Internacional Populista".
A vitória de Trump lhes dá asas. É o seu "Yes, we can" [Sim, podemos]. Se Trump pôde, Le Pen também poderá. Se Trump foi eleito, nada vai
impedir que um palhaço malvado como Beppe Grillo, por sua vez, o seja. No mundo
ocidental, pôs-se em marcha essa grande regressão
antidemocrática.
Mas
Trump foi eleito democraticamente...
Bernard-Henri
Lévy: A
democracia não se limita ao voto. Diz respeito aos valores, ao tipo de sociedade,
a uma relação com o mundo. É possível
que estejamos assistindo à autoliquidação da democracia por meio da democracia.
Além disso, na realidade, as coisas são mais complicadas. Os Estados Unidos são um grande país, e eu acredito que, no fim, vão
triunfar sobre a vulgaridade e a brutalidade. A Itália resistiu a
Berlusconi, os Estados Unidos vão resistir a Trump.
E
Putin? Que política Trump vai adotar?
Bernard-Henri
Lévy: Ele
já a anunciou. Vai comer na sua mão. Vão romper com a política de firmeza
relativa do governo Obama. Será assim por razões ideológicas e pessoais: eles têm a mesma visão do mundo, o mesmo
populismo, o mesmo desprezo pelas elites e pelos valores democráticos, mas
também a mesma vulgaridade, a mesma pertença aos clubes dos supostos
"testosterônicos". Sem falar que o Kremlin foi indiretamente – com os
seus hackers focados nos e-mails de Clinton – um dos arquitetos da vitória de
Trump. E sem falar nos laços obscuros do
passado empresarial de Trump com os amigos de Putin...
Explique
melhor.
Bernard-Henri
Lévy: Em
2004, quando Trump estava à beira do colapso financeiro, os bancos dos Estados
Unidos deixaram de financiá-lo. Alguns
oligarcas russos, então, o sustentaram. Foram eles que assinaram os seus novos
projetos imobiliários, foram eles que, de algum modo, o salvaram.
Bashar Hafez al-Assad e Vladimir Putin O presidente da Síria tem se mantido no poder graças ao apoio declarado e massivo do presidente russo |
Que
consequências essa situação terá para o Oriente Médio?
Bernard-Henri
Lévy: O
dossiê mais candente é a Síria. Se Trump
se alinhar com Putin, iremos rumo ao abandono da Síria. Rumo ao
reconhecimento a Bashar Hafez al-Assad
[presidente da Síria] do papel de grande esterilizador dos gérmens da
democracia na região. E rumo a uma
concepção da luta contra o Estado Islâmico que pressupõe uma política de terra
arrasada. Com tudo o que isso implica em termos de aumento de refugiados.
Não nos esqueçamos de que a maioria dos famosos migrantes que chegam à Europa
são de pessoas que fogem do face a face entre Assad e Estado Islâmico. Tudo o que alimenta esse face a face e
mantém Assad no poder só pode aumentar o número de refugiados.
E
Israel?
Bernard-Henri
Lévy: Trump
já disse. Pretende pedir a Israel o
reembolso de uma parte das ajudas concedidas pelos governos anteriores.
Além disso, você se lembra da vulgaridade das suas alusões às grandes
organizações sionistas estadunidenses durante a campanha eleitoral. Coisas do
tipo: "Eu sei que vocês não vão
votar em mim porque eu não quero o seu dinheiro sujo...".
Você
acaba de voltar do Iraque. Ali, no coração da guerra contra o Estado Islâmico,
essa votação também será sentida?
Bernard-Henri
Lévy: Provavelmente
sim. Até porque, ali também, Trump será
tentado a se alinhar com Putin e os seus métodos. Tomemos Mosul, por
exemplo. A coalizão internacional, por enquanto, leva uma guerra o mais limpa
possível, evitando atingir civis e limitando as perdas. Com Trump, corre-se o risco de outro tipo de guerra, ataques maciços e
cidades aniquiladas, o método Grozny ou Aleppo aplicado em Mosul.
E
os curdos? Aqueles que lutam in loco
contra o Califado, como você contou no seu filme Peshmerga, vão obter o seu Estado, no fim?
Bernard-Henri
Lévy: Eu
espero que sim. Seria o mínimo, depois de tantos sacrifícios e de tanto sangue
derramado. Além disso, essa batalha de
Mosul não começou há um mês, mas há um ano ou talvez dois, quando os curdos, e
só eles, enfrentaram as primeiras linhas do Califado [= Estado Islâmico].
Hoje, concentramo-nos nos últimos atos, esquecendo que a maior parte do trabalho foi feita pelos peshmerga, quando não havia a
coalizão internacional, muito menos uma brigada iraquiana. Mas, mesmo aí,
deve-se temer o pior. Porque, no clube dos dopados de testosterona, há um
terceiro homem, Recep Tayyip Erdoğan [presidente
da Turquia]. Ele também fascina Trump. O seu entendimento será perfeito. E ele é o inimigo jurado dos curdos. Não
vejo Trump impondo a Erdogan um Estado para os curdos...
Trump
falou dos esforços de Assad contra o Estado Islâmico, mas nunca mencionou os
curdos. Um mau sinal?
Bernard-Henri
Lévy: Eu
acho que sim. Além disso, essa história é uma balela. Acima de tudo porque os curdos estão na linha de frente contra o
Estado Islâmico. E, depois, porque, antes de combatê-lo, Assad inventou o Estado
Islâmico. Nunca devemos esquecer o jogo
duplo turco. Assim como o jogo duplo saudita ou do Catar. Não há aliados
confiáveis na luta contra o jihadismo. É possível fazer uma parte do caminho
com eles, mas sendo vigilantes e prudentes. Uma última coisa sobre a Turquia.
Já não nos perguntamos mais se ela deve ou não entrar na Europa. A questão é
mais radical: ela ainda tem direito ao seu lugar na Otan? Ela pode, sem esclarecer
as suas posições, permanecer na aliança militar que garante a segurança da
Europa? Adivinhe a minha resposta.
N O T A S
[ 1 ] ALEXIS DE TOCQUEVILLE
(Alexis-Charles-Henri Clérel, visconde de Tocqueville, 29 de julho de 1805 — 16
de abril de 1859). Ele foi um pensador político, historiador e escritor
francês. Tornou-se célebre por suas análises da Revolução Francesa, cuja
pertinência foi destacada por François Furet, da democracia americana e da
evolução das democracias ocidentais em geral. Raymond Aron pôs em evidência sua
contribuição à sociologia. Uma de suas obras, já clássicas, é A Democracia na América (2 volumes, Martins
Editora, 2014, 3ª edição).
[ 2 ] SLAVOJ ŽIŽEK
(nasceu em Liubliana, aos 21 de março de 1949). É um sociólogo e teórico
crítico e cientista social esloveno. É professor da European Graduate School e pesquisador sênior no Instituto de
Sociologia da Universidade de Liubliana.
É também professor visitante em várias universidades estadunidenses, entre as
quais estão a Universidade de Columbia,
Princeton, a New School for Social Research, de Nova Iorque, e a Universidade de Michigan. Há uma vasta
bibliografia sua publicada no Brasil, para conferi-la, clique aqui.
Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. Acesse a versão italiana
desta entrevista, clicando aqui.
A versão original da entrevista, em francês, é acessível aqui.
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