Não interessa mais a VERDADE!
Pós-verdade, pós-política, pós-imprensa
Eugênio Bucci
Jornalista
e Professor da Escola de Comunicação e Artes da USP
Todo poder emana de “O Aprendiz” e em nome de seus telespectadores
será exercido
“quis mudar tudo
mudei tudo
agorapóstudo
extudo
mudo”
Augusto de
Campos
Eles são muito ricos, chegam
de fora, arrombam a porta da direita, destroçam os partidos que os acolhem,
deblateram contra a política e os políticos, esnobam a imprensa e vencem.
O
presidente eleito dos Estados Unidos, Donald
Trump, é um deles. João Doria
Junior, prefeito eleito da cidade de São Paulo, é outro. Os dois fizeram
fama apresentando o programa de TV O Aprendiz, donde podemos concluir:
todo poder emana de O Aprendiz e em
nome de seus telespectadores será exercido. Quanto às consequências, seja na
versão soft, empoada e periférica
(Doria), ou na versão hard,
abrutalhada e central (Trump), elas se escondem no subterrâneo do futuro.
O que vem por aí? E o que é
que se foi por aí? O que ficou para trás?
Entre
outras quinquilharias, parece que o que
dançou de vez é aquilo a que se costumava chamar de verdade.
Deixemos de lado o acessório (Doria) e fixemo-nos no principal (Trump). Um traço marcante no presidente Donald é
que ele mentiu muito sobre fatos incontestáveis. Jurava que Obama não era
americano, por exemplo. Trump foi tão longe no esporte de mentir que, em
setembro, a revista inglesa The Economist
surgiu com uma capa sobre a “pós-verdade”.
Segundo os argumentos da publicação, o
descompromisso de Trump com os fatos levou a política à era da “pós-verdade”.
O desprestígio da verdade na
política vem sendo anotado há tempos. A própria Economist
sabe disso e anota que os políticos
nunca primaram pela honestidade intelectual, em tempo algum. Dizer sempre a
verdade nunca foi uma regra dos que administram a pólis [cidade/sociedade]. Uma providencial recapitulação do tema já
foi feita pelo professor Celso Lafer
em A mentira: um capítulo das relações
entre a ética e a política, no livro Ética,
organizado por Adauto Novaes (Companhia das Letras, 1992). Podemos ir direto às
fontes.
No
Livro III de A República, lá se vão
2.400 anos, Platão, que detestava os
mentirosos, abre uma exceção para o
governante que, por vezes, sonega aos governados uma informação ou outra: “Se compete a alguém mentir, é aos líderes
da cidade, no interesse da própria cidade”. Platão atribui à mentira do
líder, desde que “no interesse da própria
cidade”, um caráter piedoso,
mais ou menos como a mentira dos médicos,
que, em certas circunstâncias clínicas, funcionaria como remédio.
JOÃO DORIA JÚNIOR Também conduziu a versão brasileira do programa televisivo "O Aprendiz" |
Mais
tarde, no início do século 16, Maquiavel
expandiu com largueza a licença da inverdade na política e cobriu de elogios a astúcia da raposa. Para preservar seu poder e fortalecer o Estado mentir era apenas uma
– entre tantas outras – das
prerrogativas do príncipe. Não que o príncipe pudesse aloprar e levar suas
mentiras ao absurdo total, como faz Trump. A pretensão de que a política deveria manter nexo com algum
tipo de verdade persiste em Maquiavel e chegou até nossos dias.
Que
tipo de verdade seria esse? Na segunda metade do século 20 Hannah Arendt a identificou: a
verdade dos fatos – ou, no dizer dos jornalistas, a verdade factual. Em Verdade e Política [edição portuguesa
pela Relógio d’Água, Portugal, 1995] a
filósofa reflete sobre como o poder tende a distorcer os fatos – ela cita o
caso da União Soviética, que fez desaparecer de seus registros históricos um
dos maiores protagonistas da revolução bolchevique, Leon Trotsky – e constata
que as tiranias combatem obstinadamente
a verdade factual. Ela lembra que na Alemanha nazista era mais perigoso
falar de um campo de concentração (um fato) do que “emitir pontos de vista
‘heréticos’ sobre o antissemitismo, o racismo e o comunismo”. Ou seja, as ditaduras podem até suportar discursos
sobre teses abstratas, mas abatem a tiros as notícias factuais que as
contrariem. As democracias, ao contrário, toleram os fatos com mais
facilidade.
Aqui
chegamos a uma conjunção interessante. A verdade factual, que é “a própria
textura do domínio político”, no dizer de Hannah Arendt, é também a
matéria-prima da imprensa livre. Para
que a verdade factual possa imperar, na
política e na imprensa, é preciso que a liberdade esteja assegurada. Uma e
outra, a política e a imprensa, só prosperam em sociedades democráticas,
ou tendentes à democracia, onde a verdade dos fatos é um valor. Se a verdade factual
cai em desprestígio ou em desuso, a imprensa perde relevância e a política
simplesmente caduca.
À
sombra do declínio da política surge uma forma deturpada de religião, um tipo
de aglomeração de vontades em que as
crenças contam mais do que a razão. As “bolhas” geradas pelos algoritmos
das redes sociais jogam um peso enorme nesse descarrilamento. Com razão, as
bolhas vêm sendo apontadas como ambientes de não diálogo que apenas celebram
“pensamentos únicos”, mistificações e dogmas autoritários, à esquerda e à
direita.
Os
desdobramentos são óbvios. A verificação
da verdade factual – o ofício por excelência da imprensa – deixa de ser
essencial para os cidadãos, que prescindem de fatos para formar sua opinião.
O brilho do extremismo ocupa o lugar da
imprensa crítica. Vistas por essa lente, não há muita diferença entre a
polarização das eleições presidenciais dos Estados Unidos da América e a polarização das eleições municipais do Rio
de Janeiro. Nos dois lugares temos características
de batalha entre seitas, mais que um debate de argumentos.
Enquanto a política se
esvazia e caduca, a imprensa deixa de ser necessária, na exata medida em que a verdade factual deixa de ser o lastro do
“agir em conjunto” (na expressão de Hannah Arendt), ou do “agir conjunto” (na expressão mais sintética e mais própria
de seu principal intérprete no Brasil, Celso Lafer). Enfim, se ingressamos mesmo na era da pós-verdade,
ingressamos também na era da pós-política e da pós-imprensa. E diante
disso, francamente, um Trump (ou um
Doria) a mais ou a menos é fichinha. De verdade. De fato.
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