A ILUSÃO DE SERMOS CIDADÃOS ! ! !
Trumpillary vai à luta
Leandro Karnal*
Semelhanças profundas entre os dois candidatos são
camufladas por um
tom bélico de campanha que não reflete a realidade
À esquerda, temos o rosto de Hillary Clinton com a cabeleira de Donald Trump! À direita, temos o rosto de Donald Trump com a cabeleira de Hillary Clinton! |
O
vice-presidente dos Estados Unidos da América [EUA], Richard Nixon, vivia à sombra do popular Eisenhower. Os
republicanos tinham assumido em 1953, após 20 anos de domínio democrata. O fim
da Guerra da Coreia (1950-1953) iniciava uma diminuição da Guerra Fria e havia
um clima de otimismo econômico no ar. O californiano Nixon não era o carisma em
pessoa, mas a prosperidade da década de 50 não exigia pessoas carismáticas.
Nixon foi enviado para um
tour diplomático pela América do Sul, em abril de 1958. A recepção no Uruguai foi morna. Em Lima, no Peru, os estudantes o
hostilizaram de forma drástica, tanto na rua quanto no hotel. Em Caracas, na Venezuela, a agressão quase
virou uma tragédia. Uma multidão raivosa tentou linchar o vice-presidente. A
atitude de Nixon seria louvada como corajosa pela imprensa dos EUA. Na América Latina, o antiamericanismo
parecia ter aumentado de forma exponencial.
O episódio ocorreu há quase
60 anos. A Aliança para o Progresso que Kennedy lançou em discurso aos
embaixadores latinos, em 1961, apresentou efeitos limitados. A fratura
representada pelas imagens do Vietnã seria duradoura. “Yankees, go home” [trad.
livre: Gringos fora!] virou mantra para parte dos pensadores
latino-americanos.
Intelectuais
mais conservadores diziam o contrário. Roberto
Campos, no Brasil, era célebre pela americanofilia. O livro Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano
aprofundou essa linha afirmando que pior
do que ser explorado pelos EUA era não ser explorado. Isso significava que,
para os autores como Alvaro Vargas Llosa, países
mais ligados à economia estadunidense prosperavam, e os menos ligados ao mundo
do dólar, definhavam.
Parte
da tradição simpática aos EUA reapareceu agora, nessa época de disputa
presidencial. Um grupo decidiu, em plena
Avenida Paulista [capital paulista],
fazer uma manifestação pró-Trump. Num domingo de outubro de 2016, alguns
brasileiros seguraram cartazes em inglês atacando Hillary e apoiando o
candidato republicano.
Fica
a pergunta: por que pessoas que não
fazem nenhuma diferença no processo eleitoral dos EUA necessitam expressar sua
opinião? Provavelmente a resposta poderia ser dada tanto pelos estudantes
que agrediram Nixon como pelos que manifestaram apoio a Trump na Paulista.
Repercussão
A
eleição no grande irmão do Norte abala mais consciências do que votações em
outros lugares. Críticos e defensores,
pensadores de direita e de esquerda: todos, de alguma forma, consideram os EUA
símbolo do que amam ou odeiam. O capitalismo dos EUA ofende quem é inimigo
desse sistema e entusiasma aqueles que o defendem. Os EUA sempre constituem o chamado tipo ideal, o protótipo do que deve
ser evitado ou seguido.
Por
um lado, se os EUA apoiam a candidata democrata, todas as posições que, no
Brasil são construídas em torno de Hillary (empoderamento feminino, por
exemplo) passam a ser mais válidas. Por outro lado, se o apoio a Trump cresce,
posições contra aumento do Estado e críticas ao esquerdismo ganham reforço no
Brasil. O modelo do Norte servirá de
guia e cânon. No fundo, tanto
inimigos como aliados, prestam essa homenagem: não importa o sucesso ou
fracasso do capitalismo em Luxemburgo, mas, apenas, no seu epicentro nervoso,
os EUA.
A retórica de Trump encarna o político independente que desafia chefões
tradicionais do jogo de Washington. Políticos tradicionais são odiados nos EUA
e no Brasil. Habilmente, Trump conseguiu
parecer um homem de ação e de liberdade de expressão, num mundo onde cada um só
fala aquilo que agrada a todos. O republicano usa sua habilidade teatral
para reforçar como ele é o verdadeiro americano, aquele que acredita no esforço
individual e é livre. Trump é o porto
onde nacionalistas, machistas, racistas e homofóbicos podem ancorar seu navio
com segurança.
A retórica de
Hillary, da mesma forma, tentou
convencer a todos de que ela seria a candidata crítica e alternativa, a
primeira mulher a postular a chefia da nação com chances reais de vencer, a
ponderada em detrimento do intempestivo adversário. Hillary parece o porto onde feministas, cosmopolitas e
liberais podem ancorar seu navio com segurança.
Quando
eu vejo essa polarização, não comum nas campanhas dos EUA, penso seriamente num
hipotético polonês, em 1945, tendo
de tomar partido entre os nazistas que arrasaram o país (e estavam sendo
expulsos) e seus libertadores soviéticos. A pergunta sempre difícil: você prefere nazistas ou soviéticos?
Agressividade
Tanto
nos EUA como aqui, as pessoas destemperadas, inclinadas aos palavrões, sem
freios politicamente corretos, parecem estar em ascensão. A capacidade de insultar foi associada a uma veia de autenticidade.
Ulisses Guimarães, criticando a campanha de Collor (um Trump avant la lettre = antes de seu tempo),
teria dito que, em época de campanha, abraçaria até estuprador.
É
exatamente essa prática do político comendo com felicidade o pastel engordurado
na feira e abraçando todos que irrita o eleitor médio. Jânio Quadros conseguiu
vender, na sua Vila Maria e no país todo, o marketing da antipolítica.
A política representativa,
no Brasil e nos EUA, está chegando a um paradoxo cada vez mais complexo. O aumento do narcisismo do indivíduo exige que o candidato tenha um
perfil que seria a representação do próprio eleitor melhorado. Só assim ele “me
representa”, usando a próclise que se consagrou no nosso mundo. Cada
vez mais, o candidato deve encarnar meu
eu melhorado e seu adversário passa a ser meu perfeito outro piorado.
Trump acusou Obama de não
ter nascido nos EUA. Foi uma calúnia política e, diante de documentos claros, ele teve de
retroceder. A mentira política faz parte
do jogo, mas, no mundo da internet, ela é usada como ferramenta básica. Um
dos manifestantes da paulista usava o cartaz “Obama e Hillary criaram o ISIS” (o Estado Islâmico). É uma calúnia política, mas, atualmente, a
verdade não é mais fundamental. A chave é usar os recursos da detração para
atingir o outro, o inimigo, aquele que representa o oposto do meu mundo e, por
consequência, não me representa.
Assim,
distantes no espaço, os manifestantes da
Paulista e os eleitores dos EUA mostram o verdadeiro candidato de todos: o Narciso. Minha opinião deve ser manifestada,
mesmo que ninguém a tenha pedido, mesmo que ninguém a respeite, mesmo que não
faça a menor diferença porque isso, em última análise, é liberdade de expressão.
Semelhanças
As diferenças entre
republicanos e democratas são mais de slogans do que de práticas concretas. Hillary
e Trump são membros de uma elite branca e bem sucedida, uma é rica, o outro,
milionário. Ambos estão convictos de valores bem mais próximos do que
gostariam de reconhecer. Mas, para fins de campanha, tornam-se polos de dois
mundos incomunicáveis e mutuamente excludentes.
Você
imagina um homem sem controle tendo o poder de acionar o maior arsenal atômico
do planeta? Um pesadelo! Você imagina uma mulher que usa servidores não seguros
para trocar e-mails portadores de segredos de Estado? Um desastre.
* Trump é o modelo do americano xenófobo e bem sucedido.
* Hillary é a mulher política que ignorou a traição do marido e agora
recebe apoio do casal Obama, exatamente o mesmo Obama que ela atacou de forma
visceral quando disputou com ele a candidatura democrata. Um que erra por falar demais; outra que muda o discurso de acordo com
sua ambição do momento.
Tradução: "Corrida à Casa Branca É Trump ou Clinton? Você decide o caminho que o próximo presidente toma à Casa Branca" |
Democracia
é o melhor dos sistemas, sempre. Mas há uma conclusão incômoda. Quem manda nos Estados Unidos e no Brasil
não está concorrendo e nem precisa do seu voto. Quem tem o poder real,
nunca se candidata e nós, como uma
plateia de musical da Broadway, batemos palmas para X ou Y, porque isso nos
transmite o conforto de que nossa aprovação é determinante para o espetáculo.
Orgulhoso,
eu ligo para o Serviço de Atendimento ao
Cidadão (SAC) da grande empresa e
sou atendido por alguém que não decide nada e me dá razão. Quem manda, de
verdade, está inacessível. Desligo o telefone com sensação de poder.
Seria
a consulta popular a maneira mais sofisticada de perguntar minha opinião sobre
quem não vai, de fato, mandar? Assim, aqueles
sobre os quais eu nunca fui consultado podem continuar, democraticamente,
fazendo o que querem? Marionete com ilusão de liberdade seria mais feliz?
Nosso/a
candidato/a é Trumpillary! Só com Trumpillary seremos felizes.
* LEANDRO KARNAL (nascido em São Leopoldo, RS, em 1º de
fevereiro de 1963) é um historiador brasileiro, atualmente professor da Universidade Estadual de Campinas na
área de História da América. Foi também curador de diversas exposições, como A Escrita da Memória, em São Paulo, tendo
colaborado ainda na elaboração curatorial de museus, como o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo.
Graduado em História pela Universidade do
Vale do Rio dos Sinos e doutor pela Universidade
de São Paulo, Karnal tem publicações sobre o ensino de História, bem como
sobre História da América e História das Religiões (Fonte: Wikipédia).
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