«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

O QUE LEVOU OS AMERICANOS A ACREDITAREM EM TRUMP?

John Carlin

Milhões de norte-americanos apoiam um candidato que não tem causa,
e sim inimigos

«O demagogo é aquele que prega doutrinas que sabe que são mentira
a pessoas que sabem que é idiota».
H.L. Mencken 
DONALD TRUMP
Discursa após a confirmação de sua vitória nas eleições presidenciais dos Estados Unidos
Hotel Hilton Midtown - Nova York, quarta-feira, 9 de novembro de 2016

O problema não é Donald Trump. O problema é o trumpismo, um coquetel de ódio e fascismo repleto de mentiras e incoerências confeccionado sobre a marcha por Trump e seus aduladores em um processo febril de incitação mútua.

Os ingredientes de ódio são conhecidos por qualquer um que tenha prestado um pouco de atenção à campanha presidencial dos Estados Unidos:
* fala mal dos mexicanos,
* dos muçulmanos,
* dos judeus,
* dos negros,
* dos imigrantes em geral,
* das pessoas com deficiências,
* dos intelectuais e das mulheres, especialmente as mulheres modernas, pós-feministas e independentes, cuja imagem mais visível é sua rival para a presidência dos Estados Unidos, Hillary Clinton.

Os ingredientes fascistas também não são difíceis de se identificar: Trump, apoiado em sua candidatura pelo jornal oficial da Ku Klux Klan, afirma que:
* se chegar à presidência irá prender Hillary Clinton, fazendo pouco caso do princípio democrático da independência do judiciário;
* que se não vencer, não respeitará o resultado [agora que venceu, ele respeita o resultado, obviamente!], sugerindo ao mesmo tempo que poderá incitar seus partidários a que peguem em armas;
* que a tortura é desejável como método de interrogação;
* que os muçulmanos nos Estados Unidos, como os judeus na época nazista, devem ser todos identificados em uma base de dados.

Mas o problema não é Donald Trump, por mais que seja a expressão em carne e osso de quase tudo o que é vil no ser humano. O problema são as pessoas que acreditam que semelhante animal é digno de ser o presidente dos Estados Unidos, o país com maior poder sobre a humanidade do que qualquer outro. O problema é que dezenas de milhões de norte-americanos pensam [e votaram, de fato!] em votar em um homem que diz que o governante que mais admira no mundo é o ditador russo e ex-oficial da KGB Vladimir Putin. O problema é a idiotice da turba trumpista.
APOIADORES DO CANDIDATO A PRESIDENTE DONALD TRUMP
Em um dos cartazes, aquela mais à esquerda, se lê:
"A maioria silenciosa está com Trump"

Amo os que não têm educação, declara Trump, e as multidões o aplaudem. Ele os ama porque não sabem distinguir entre a verdade e as mentiras nas quais ele se baseia, que, como está bem documentado, são 70% do que Trump diz.

Um exemplo dessas mentiras entre milhares. Trump insiste que o índice de homicídios nos Estados Unidos hoje é o mais alto em 45 anos. Trump se queixa aos seus devotos que a imprensa jamais menciona esse fato. Não o faz porque é mentira. O índice de homicídios em 1980 foi o dobro do que em 2015.

O que Trump faz é apresentar uma imagem aterradora dos Estados Unidos, uma espécie de Estado fracassado mergulhado na criminalidade e na miséria. É o velho truque do demagogo fascista, seja Hitler, Franco ou Mussolini, seja o inimigo o comunismo ou a conspiração judaica. Confiem em mim; só eu sou capaz de salvá-los. [Aliás, ele afirmou isto mesmo em seu último comício na madrugada de segunda para terça-feira, dizendo que era a única e última chance de mudança e transformações para os Estados Unidos!]

O problema não é Trump; o problema são os que acreditam nele. Como nos lembra uma crítica da mais recente biografia de Hitler no New York Times, escrita por um historiador alemão chamado Volker Ullrich:
O que realmente dá medo no livro de Ullrich não é que Hitler pudesse ter existido,
mas o fato de que tanta gente pareça ter esperado que aparecesse”.

É verdade que o adjetivo de fascista foi utilizado com exagerada frequência e volubilidade desde os anos trinta. Mas nesse caso, já que o assunto em questão é a campanha de Trump para chegar ao poder, a comparação não é frívola. Renomados intelectuais de esquerda e direita nos Estados Unidos, entre eles o professor universitário de economia Robert Reich e o historiador Robert Kagan, definiram explicitamente como de caráter fascista o culto ao homem forte redentor que se criou ao redor da figura de Trump.

A vitória eleitoral de Hitler em 1933 foi o triunfo do ódio, da barbárie e da estupidez. Uma vitória para Trump nas eleições de terça-feira seria o mesmo [e não deu outra, ele venceu!]. Não existe lógica alguma para que dezenas de milhões de norte-americanos, a maioria deles aparentemente formada por homens brancos que se sentem marginalizados e ressentidos, vejam em Trump o homem que lhes devolverá à prosperidade. A parte do cérebro que utiliza a razão não entra em ação. Trump é um bilionário que não paga impostos há 20 anos e é favorável a que se corte ainda mais os impostos dos super-ricos.
TONY SCHWARTZ
Autor do livro "The Art of the Deal" = A Arte da Negociação
a partir das ideias de Donald Trump

A parte do cérebro que entra em ação é a mais primitiva e animal. A do medo e da agressão, a da manada. Tony Schwartz, que há 30 anos vendeu sua alma e escreveu para Trump seu livro A Arte da Negociação, chegou a conhecer o atual candidato melhor do ninguém. “Trump está só um degrau acima da selva”, disse em uma entrevista semana passada ao Times de Londres. “Sua visão do mundo é tribal”.

O que seria um problema somente para seus familiares e conhecidos que precisam aguentá-lo se não fosse pelo fato de que as massas descerebradas o adoram e existe o sério risco [agora, fato!] de que acabe ocupando a Casa Branca. Não existe análise política que explique isso. Essa ferramenta não é o suficiente. Para entender o fenômeno Trump é preciso recorrer à antropologia, nesse caso ao estudo do animal humano em sua versão mais selvagem e primitiva. Porque o trumpismo não tem causa; tem inimigos. Não propõe esperança, propõe ódio.

O problema não é Trump. O fantástico, o grotesco, o surreal é que às vésperas das eleições as pesquisas digam que o ódio, a barbárie e a estupidez têm uma razoável possibilidade de vencer, que não é uma bobagem pensar que Trump conseguirá os votos necessários para ser coroado presidente dos Estados Unidos. O fantástico, o grotesco, o surreal é que tantos milhões dos habitantes do país mais próspero do mundo compartilhem sua visão tribal, que não só Trump, mas também seus devotos estejam somente um degrau acima da selva.

Fonte: El País – Eleições Estados Unidos 2016  – Segunda-feira, 7 de novembro de 2016 – 17h30 [Horário Centro Europeu] – Internet: clique aqui.

OLHANDO MAIS A FUNDO A QUESTÃO:

América Profunda, explicação para o
fenômeno Trump

Entrevista com Arlie Russell Hochschild
Socióloga norte-americana, professora emérita da Universidade da Califórnia em Berkeley

Álvaro Guzmán Bastida
Contexto y Acción
26-10-2016

Após mergulhar por cinco anos num bastião conservador, socióloga constata:
arrogante, esquerda desprezou os brancos empobrecidos.
Eles a identificam com o poder e vingam-se no voto.
ARLIE RUSSELL HOCHSCHILD

O que vai acontecer depois das eleições norte-americanas de 8 de novembro?

A maioria dos comentaristas liberais, no sentido anglo-saxão do termo, sonham com baixar uma grossa cortina sobre a revolta do “trumpism” — como um pesadelo coalhado de fanatismo e “deplorável” ignorância — após vencer o magnata nas urnas [o que não aconteceu, deu Trump!].

Isso, avalia Arlie Russell Hochschild (Boston, 1940), será um erro terrível. Há cinco anos, a reconhecida socióloga, professora emérita da Universidade da Califórnia em Berkeley, vem fazendo um exame de consciência em nome do Partido Democrata. Ela lavrou suas penitências em um novo livro, Strangers in their Own Land: Anger and Mourning on the American Right (trad.: Estrangeiros em sua própria terra. Raiva e luto na direita americana).

Arlie Hochschild, que começou sua pesquisa muito antes que Trump entrasse na política, detectou uma quebra entre a direita radical anti-Estado, materializada no por então emergente Tea Party*, e certa elite progressista cheia de desdém e autossuficiência. Para a socióloga, grande parte da classe trabalhadora branca, “gente decente e com preocupações bem reais”, se sente esquecida pelo Partido Democrata, ainda que este seja, em tese, seu aliado natural. “Muitos têm simpatia por Bernie Sanders. A bola está no campo dos democratas. O erro é deles: foram eles que abandonaram a classe trabalhadora” — adverte ela, em uma conversa por Skype.

Ao seus setenta anos, Hochschild decidiu deixar para trás um confortável hábitat de intelectuais que compartilhavam suas ideias progressistas, para adentrar no sul profundo dos Estados Unidos. Mudou-se para o coração da Luisiana mais homogeneamente branca, cristã, rural e empobrecida, para tentar entender o que alimentava o ódio ao Estado e à redistribuição que imperavam nessa região. O resultado é um formidável retrato da direita norte-americana e daquilo que Arlie Hochschild chama sua deep story (narrativa profunda), que lhe valeu a indicação para o National Book Award (Prêmio Nacional do Livro).

Eis a entrevista.

Por que você decidiu embarcar nesse projeto que lhe custou cinco anos?

Arlie Hochschild: Há cinco anos, eu já notava uma enorme divisão nos Estados Unidos entre esquerda e direita. Essa brecha só fazia crescer, não porque a esquerda estivesse se movendo para a esquerda, mas porque a direita se tornava mais direita. Dei-me conta de que eu não entendia, de forma alguma, esse fenômeno; de que vivia num lugar habitado por gente que tampouco o entendia. Então decidi sair dali e buscar um entorno o mais diferente possível do meu. Encontrei-o no Sul, onde a direita cresceu mais rápido. A Luisiana era o supersul: branco, velho e religioso. Era o que eu queria realmente conhecer.

Meu objetivo era decifrar o paradoxo desse Estado vermelho [ou seja, republicano; por oposição aos “azuis” democratas]. Nos Estados Unidos são os Estados mais pobres, os que têm mais famílias desestruturadas, os piores sistemas de saúde e educação, e que recebem mais dinheiro do governo federal que os impostos que pagam, exatamente aqueles que se opõem com mais virulência ao Estado e que querem reduzir seu poder. Esse é o paradoxo: se você tem um problema, por que você não quer que lhe ajudem?

Tudo isso chegava ao extremo na Luisiana. Era o Estado mais pobre da União; 44% do orçamento vinha do governo federal; e ainda assim era o Estado mais pró Tea Party, o mais conservador. Pensei: “isso é perfeito!”. Desliguei meu sistema de alarme político e moral para poder escutar e tentar escalar o “muro da empatia” que me separava dessa gente. Queria averiguar o que sentiam, e por que sentiam o que sentiam. Esse era o projeto.

Você descreve sua viagem de cinco anos como a busca de uma narrativa profunda. A que exatamente você se refere?

Arlie Hochschild: Esse é o conceito básico do livro. Quando perguntamos a alguém: “Quais são as suas ideias políticas?” É de se esperar que respondam falando dos seus valores e do tipo de políticas que gostariam de ver aplicadas. Mas por baixo disso há algo mais básico. Eu chamo a isso de deep story (narrativa profunda). Todos, sejamos de esquerda ou de direita, a temos. É a narrativa da vida como cada um a sente, desprovida de juízos morais e de fatos. É como um sonho, mas que parece real para uma pessoa.

A narrativa profunda da direita que subjaz a tudo o que escutei durante esses cinco anos é essa: A pessoa está numa fila, como em uma espécie de peregrinação; no final dessa fila está o sonho americano, que essa pessoa deseja e crê que merece, porque cumpriu as regras e trabalhou duro a vida toda; só que a fila não anda, e de repente as pessoas começam a ver que outros estão cortando a fila na frente delas. Isso provoca uma enorme sensação de injustiça.

Quem corta a fila nessa história? Não tem ninguém para impedir isso?

Arlie Hochschild: Os que cortam a fila são os negros que, por meio de políticas de discriminação positiva, têm acesso a postos de trabalho que normalmente estavam reservados aos brancos. Antes da Affirmative Action, as políticas estatais de discriminação positiva, as mulheres não podiam ter acesso aos postos de trabalho dos homens. Agora podem. Imigrantes e refugiados… todos esses grupos.

Essa gente que espera na fila não tem, concretamente, nenhum rancor contra ninguém. Só querem alcançar o sonho americano, mas algo se interpõe no seu caminho e lhes empurra para trás. Nessa narrativa, isso é culpa de Barack Obama, que deveria vigiar a fila. Para todos então, ele seria o cara que facilita que os outros cortem a fila. Isso torna o governo federal uma imensa máquina de marginalização. “É o governo deles, não o nosso. Não quero pagar imposto para eles. Quero ficar de fora. Eu sou um estrangeiro na minha própria terra”.

Há uma outra parte nessa deep story: Enquanto a fila não anda, você vê alguém na frente se voltar para trás e dizer: “Sulistas estúpidos! Estão ferrados. Vocês são uns ignorantes”. É como uma bofetada. 
DESFILE DA TERÇA-FEIRA "GORDA" DE CARNAVAL - LAKE CHARLES (Luisiana)

O que você achou ao ouvir a Hillary Clinton chamar de “deploráveis” os eleitores de Donald Trump?

Arlie Hochschild: Eu gostaria de tê-la metido em um avião comigo, trazê-la a Lake Charles, Luisiana, e lhe apresentar as pessoas desses povoados, que cheguei a conhecer bastante bem; pedir-lhe que sentasse, tomasse uma cerveja, fosse pescar e conhecesse algumas pessoas dessa gente incrível que de modo algum é deplorável, ao contrário, bastante admirável, mas que vive numa verdade diferente. De fato, ela poderia fazer muito para resolver seus problemas, se se preocupasse por conhecê-los.

Você acredita que essa gente se sente ignorada pelo Partido Democrata?

Arlie Hochschild: Exatamente. Essa é a mensagem do livro: de que há gente decente com preocupações bem reais, que se sente esquecida. O Partido Democrata, o partido dos trabalhadores, está se desmilinguindo. Os trabalhadores abandonam o partido em massa, fazendo com que seja a esquerda que se transforme em estrangeira na sua própria terra. Não são absolutamente deploráveis. São seus aliados naturais. Muitos têm simpatia por Bernie Sanders, que chamam afetuosamente de “tio Bernie”. De fato, estamos já de acordo em muitas coisas. A bola está no campo dos democratas. O erro é todo deles: foram eles que abandonaram a classe trabalhadora. [Este é o erro, inclusive, da maioria dos políticos pelo mundo afora! Não levar em conta os marginalizados pela globalização, pelo progresso científico-tecnológico e, principalmente, pela financeirização da economia!]

Um dos personagens do livro, Mike, sofreu por conta de um desastre ambiental, e é muito ativo em lutas ecológicas, mas também se opõe à regulação estatal. Como essas ideias convivem?

Arlie Hochschild: É verdade. Mike é agora ecologista, mas também vai votar em Donald Trump. Por que ele desconfia do Estado e preferiria não pagar impostos? Creio que há três respostas no seu caso. Uma é a narrativa profunda. Ele me disse: “Eu encarno a sua metáfora”. Ele acha que o Estado seria um instrumento da sua própria marginalização. Também acredita que ele representa o Norte, sempre dizendo para o Sul o que fazer, como nos tempos da Guerra Civil, e isso não lhe agrada. E tem uma terceira razão: Mike percebe o governo da Luisiana como um instrumento a serviço do petróleo, e acha o mesmo do governo federal, que é um instrumento a serviço da indústria.
AO FUNDO SE VÊ REFINARIA DE PETRÓLEO NA CIDADE DE NORCO (LUISIANA)

Isso se aproxima bastante de uma perspectiva progressista. Da forma como eu o entendo, as grandes empresas petroquímicas e petroleiras são as novas plantations [fazendas de escravos]. São instituições de alto investimento e enorme rentabilidade, e que compraram o governo estadual. Pagam ao governo do Estado para que ele faça a sua licitação. É como se o Estado fosse parte da empresa. Essas grandes empresas fizeram uso de uma estratégia emocional. Dizem: “Necessitamos de um bilhão e meio de dólares do dinheiro dos contribuintes para poder assentar nossas raízes aqui na Luisiana, ao invés de ir para o Texas”. Com uma pitadinha desse dinheiro distribuem alguns presentes, pagam os uniformes da equipe de futebol americano da Universidade do Estado da Luisiana, da Audubon Society para a proteção da natureza, ou então financiam um curso de ciências para o ciclo básico. E as pessoas dizem: “As empresas são bondosas. Nos dão presentes e trabalho”.

Elas constroem, no entanto, fábricas altamente automatizadas que importam trabalhadores de fora, filipinos instaladores de tubulações e químicos do Instituto Tecnológico de Massachusetts. Geram pouquíssimos postos de trabalho permanentes para as pessoas da Luisiana, algo em torno de 16%, segundo a maioria das estimativas. O resto são professores, enfermeiras, funcionários públicos… Mas a empresa goza de boa reputação. Enquanto isso, é o Estado que faz o trabalho sujo das empresas. Sua função é dizer que protege as pessoas da poluição, quando de fato não as protege. Assim, as pessoas odeiam o Estado e amam as empresas.

Os progressistas chegam e perguntam, consternados: “Como você pode amar a empresa que está contaminando e odiar o Estado que poderia solucionar o seu problema?”. As pessoas não veem as coisas assim. Esse é um Estado refém. Não me estranha que elas não gostem dele. Ele está dominado, é um instrumento do petróleo.

Você mencionou as plantations, parte da longa, profunda e enraizada história da discriminação racial na Luisiana. Muitos progressistas reputam as reclamações de pessoas como os personagens do seu livro à nostalgia dos privilégios abusivos desse passado. Eles os acusam de racistas. O que estaria falhando nessa análise?

Arlie Hochschild: Ela é parcial e distorcida; sugere que o problema está só no Sul. Creio que é um problema nacional. E também tira os preconceitos raciais de um contexto mais amplo, a que me refiro no livro como honor squeeze, ou sufocamento cultural. Essa gente se sente abandonada pelo caminho de muitas maneiras. É uma gente religiosa numa sociedade secularizante. Não se pode dizer “Feliz Natal” em um lugar público. Tem que dizer “Boas Festas” ou só “Felicidades”. Como sulistas, sentem-se desprezados. É mais cool estar em Nova York, San Francisco, Los Angeles.

Sentem que sua atitude a respeito da família é agora ilegal no país, desde que a Suprema Corte decidiu que as mulheres têm direito a abortar em certas circunstâncias e que os gays têm direito a se casar. Tudo isso os faz se sentir demográfica, social, cultural e economicamente marginalizados. Os sentimentos raciais são apenas uma parte disso. Sentem-se em competição com os negros. Sentem que os negros subiram e eles desceram, e que eles também são agora uma minoria.
NO CARTAZ QUE UMA MULHER SEGURA, ESTÁ ESCRITO:
"Obrigado, Senhor Jesus, pelo presidente Trump"

Donald Trump não tinha ainda passado para a política durante a maior parte da sua pesquisa. Como a ascensão dele, até a indicação do Partido Republicano, afetou as pessoas que aparecem no seu livro?

Arlie Hochschild: Quando fui a uma plenária de Donald Trump antes das primárias na Luisiana, em março desse ano, me dei conta de que havia passado quatro anos e meio estudando um monte de lenha, e que agora, com Donald Trump, estava estudando o fósforo que acenderia a fogueira. Eles se sentem estrangeiros em sua própria terra, à deriva a bordo de uma América sem rumo. Trump se apresentou como um salvador. Prometeu-lhes tudo, recuperar a dignidade. Falava por eles “Sim, vocês se sentem jogados. Caem pouco a pouco…. Eu os levantarei”. Era um fenômeno quase religioso.

No livro você descreve seu encontro com uma cantora de gospel, Madonna Macy, que lhe falou do locutor de rádio favorito dela, um jornalista extremamente conservador. O que você aprendeu ao conhecê-la?

Arlie Hochschild: Eu a conheci em uma reunião das Mulheres Republicanas do sudoeste da Luisiana, em Lake Charles e ela me disse “Amo Rush Limbaugh”, um popular comentarista de rádio de direita, agressivo e extremadamente conservador, provavelmente o mais popular no dial americano. Perguntei-lhe por que gostava. “Ele odeia as feminazis”, me respondeu. Então lhe preguntei: “O que é uma feminazi?”. “São essas feministas que querem ser iguais aos homens. São más, ambiciosas, egocêntricas”. Essa era a sua visão. Em seguida disse amavelmente: “Foi difícil me escutar?” e completou: “Na realidade, vejo Rush Limbaugh como alguém que me protege de pessoas como você, os liberais que acreditam que sou retrógrada e inculta, e que tenho uma atitude equivocada, que sou racista, sexista e homofóbica, e, pra completar, também gorda”. Senti que os progressistas impunham até as regras alimentares no Sul, onde se ama comida frita.

Tem outro personagem no livro, chamado Lee, que encarna o grande paradoxo porque também apoia as causas ecologistas ao mesmo tempo que as políticas antirregulação do Tea Party. Despediram-no por contaminar um estuário? Por que ele não culpa a empresa que o empregava, que continua sendo muito poderosa na Luisiana?

Arlie Hochschild: Trata-se de um homem que fez o trabalho sujo da empresa durante anos. Todos os dias, ao pôr do sol, derramava às escondidas um resíduo quente, tóxico e perigoso em uma via fluvial. Ele se sentia muito culpado por fazê-lo. Acabou adoecendo por causa daquilo, porque estava exposto a um produto químico tóxico. Afastou-se por doença e então o despediram por faltar ao trabalho.

Ele odiava a empresa, Axiall, por ter-lhe feito isso. Disse-me: “Minha mulher teve que esconder a pistola. Estava tão furiosa pelo que me tinham feito…” Ao mesmo tempo, sentiu que o Estado não o protegia dos abusos da empresa. É a lógica que vi em toda parte: as pessoas odeiam o Estado porque recolhe impostos e, daí, se supõe que tem que fazer coisas boas, mas depois sentem que só serve para os marginalizar. [Atenção! Esse tipo de sentimento tem crescido muito no Brasil, basta recordar-se das manifestações de junho de 2013 quando se reclamava da falta de serviços prestados pelo Estado com o padrão “Fifa”!]

A história de Lee continuou, e ele conseguiu se vingar da empresa. Os resíduos estavam contaminando os peixes, e isso levou o governo a sugerir um limite de consumo de pescado. Os pescadores e donos de restaurante ficaram furiosos. A recomendação do Estado deixava-os sem negócio. Houve uma grande reunião com mil pessoas. Lee Sherman subiu ao palco com um cartaz que dizia: “Fui eu que derramei o resíduo tóxico na água”. Os pescadores tiveram que coçar a cabeça e dizer: “Suponho que a culpa não é do grande Estado, mas da grande empresa”.

Agora Lee quer se vingar do Estado. Aos seus 83 anos está distribuindo cartazes para o candidato do Tea Party ao Congresso por Luisiana.
           
Você menciona no seu livro a EMOÇÃO como um ingrediente chave da política. Por que ela é importante como elemento de análise?

Arlie Hochschild: Creio que chegar a entender a narrativa profunda de cada um de nós é um passo preliminar para respeitar e entender, fundamentalmente, o que leva as pessoas a pensar o que pensam na política. Isso nos abre aos outros. Não é exatamente um fim em si mesmo, mas é preciso fazê-lo. Do contrário, o diálogo será inútil e defensivo. Temos que criar — e me refiro à nação no seu conjunto, esquerda e direita — uma zona de segurança na qual possamos nos comunicar sobre esses assuntos de forma aberta e produtiva. Isso não vai acontecer até que analisemos as bases emocionais de nossas convicções políticas.

* O movimento TEA PARTY (em inglês: Tea Party movement, às vezes traduzido como Partido do Chá) é um movimento social e político criado nos Estados Unidos em 2009. Tem sido descrito como populista, ideologicamente ligado ao libertarianismo e à direita. Este grupo político trata-se de uma ala radical do Partido Republicano dos Estados Unidos, e não é considerado um partido em si apesar de contar com a adesão de boa parte dos Republicanos. O movimento surgiu a partir de uma série de protestos coordenados, tanto no nível local como nacional, que se realizaram a partir do início de 2009. Os protestos foram, em parte, motivados por diversas leis federais, como o Plano de resgate econômico de 2008, a Lei de Recuperação e Reinvestimento dos Estados Unidos de 2009 e a Lei de Proteção ao Paciente e Assistência Médica Acessível (reforma do sistema de saúde, popularmente conhecida como "Obamacare"). O movimento defende uma política fiscal conservadora e o originalismo, isto é, a interpretação do texto constitucional segundo o seu significado à época em que foi adotado. De acordo com diversas pesquisas de opinião, cerca de 10% dos norte-americanos consideram-se parte do movimento (Fonte: Wikipédia).

Traduzido do espanhol por Ricardo Cavalcanti-Schiel, com pequenas e pontuais correções por parte de Telmo José Amaral de Figueiredo. Acesse a versão original desta entrevista, clicando aqui.

Fonte: Outras Palavras – Terça-feira, 8 de novembro de 2016 – Internet: clique aqui.

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