O QUE LEVOU OS AMERICANOS A ACREDITAREM EM TRUMP?
John Carlin
Milhões de norte-americanos apoiam um candidato que não
tem causa,
e sim inimigos
«O demagogo é aquele que prega doutrinas que sabe que são mentira
a pessoas que
sabem que é idiota».
H.L. Mencken
DONALD TRUMP Discursa após a confirmação de sua vitória nas eleições presidenciais dos Estados Unidos Hotel Hilton Midtown - Nova York, quarta-feira, 9 de novembro de 2016 |
O
problema não é Donald Trump. O problema
é o trumpismo, um coquetel de ódio e
fascismo repleto de mentiras e incoerências confeccionado sobre a marcha
por Trump e seus aduladores em um processo febril de incitação mútua.
Os ingredientes de
ódio são conhecidos por qualquer um
que tenha prestado um pouco de atenção à campanha presidencial dos Estados
Unidos:
* fala mal dos mexicanos,
* dos muçulmanos,
* dos judeus,
* dos negros,
* dos imigrantes em geral,
* das pessoas com
deficiências,
* dos intelectuais e das
mulheres, especialmente as mulheres modernas, pós-feministas e independentes,
cuja imagem mais visível é sua rival para a presidência dos Estados Unidos,
Hillary Clinton.
Os ingredientes
fascistas também não são difíceis de
se identificar: Trump, apoiado em sua candidatura pelo jornal oficial da Ku Klux Klan, afirma que:
* se chegar à presidência irá prender Hillary Clinton, fazendo pouco
caso do princípio democrático da independência do judiciário;
* que se não vencer, não respeitará o resultado [agora
que venceu, ele respeita o resultado, obviamente!], sugerindo ao mesmo
tempo que poderá incitar seus partidários a que peguem em armas;
* que a tortura é desejável como método de interrogação;
* que os muçulmanos nos Estados Unidos, como os judeus na época nazista, devem
ser todos identificados em uma base de dados.
Mas
o problema não é Donald Trump, por mais que seja a expressão em carne e osso de
quase tudo o que é vil no ser humano. O
problema são as pessoas que acreditam que semelhante animal é digno de ser o
presidente dos Estados Unidos, o país com maior poder sobre a humanidade do
que qualquer outro. O problema é que dezenas
de milhões de norte-americanos pensam [e votaram, de fato!] em votar em um homem que diz que o
governante que mais admira no mundo é o ditador russo e ex-oficial da KGB Vladimir Putin. O problema é a idiotice da turba
trumpista.
APOIADORES DO CANDIDATO A PRESIDENTE DONALD TRUMP Em um dos cartazes, aquela mais à esquerda, se lê: "A maioria silenciosa está com Trump" |
“Amo os que não têm educação”, declara Trump, e as multidões o aplaudem. Ele os ama porque não sabem distinguir entre a verdade e as mentiras nas quais ele se
baseia, que, como está bem documentado, são 70% do que Trump diz.
Um
exemplo dessas mentiras entre milhares. Trump insiste que o índice de
homicídios nos Estados Unidos hoje é o mais alto em 45 anos. Trump se queixa
aos seus devotos que a imprensa jamais menciona esse fato. Não o faz porque é
mentira. O índice de homicídios em 1980
foi o dobro do que em 2015.
O que Trump faz é apresentar
uma imagem aterradora dos Estados Unidos, uma espécie de Estado fracassado
mergulhado na criminalidade e na miséria. É o velho truque do demagogo fascista, seja
Hitler, Franco ou Mussolini, seja o inimigo o comunismo ou a conspiração
judaica. Confiem em mim; só eu sou capaz
de salvá-los. [Aliás, ele afirmou isto mesmo em
seu último comício na madrugada de segunda para terça-feira, dizendo que era a
única e última chance de mudança e transformações para os Estados Unidos!]
O problema não é Trump; o
problema são os que acreditam nele. Como nos lembra uma crítica da mais recente
biografia de Hitler no New York Times,
escrita por um historiador alemão chamado Volker
Ullrich:
“O que realmente dá medo no livro de Ullrich não é que Hitler pudesse
ter existido,
mas o fato de
que tanta gente pareça ter esperado que aparecesse”.
É
verdade que o adjetivo de fascista
foi utilizado com exagerada frequência e volubilidade desde os anos trinta. Mas
nesse caso, já que o assunto em questão é a campanha de Trump para chegar ao
poder, a comparação não é frívola.
Renomados intelectuais de esquerda e direita nos Estados Unidos, entre eles o
professor universitário de economia Robert
Reich e o historiador Robert Kagan,
definiram explicitamente como de caráter fascista o culto ao homem forte redentor que
se criou ao redor da figura de Trump.
A vitória eleitoral de Hitler em 1933 foi o triunfo do ódio, da barbárie
e da estupidez. Uma vitória para Trump nas eleições de terça-feira seria o
mesmo [e não deu outra, ele venceu!]. Não
existe lógica alguma para que dezenas de milhões de norte-americanos, a maioria
deles aparentemente formada por homens brancos que se sentem marginalizados e
ressentidos, vejam em Trump o homem que lhes devolverá à prosperidade. A parte
do cérebro que utiliza a razão não entra em ação. Trump é um bilionário que não paga impostos há 20 anos e é favorável a
que se corte ainda mais os impostos dos super-ricos.
TONY SCHWARTZ Autor do livro "The Art of the Deal" = A Arte da Negociação a partir das ideias de Donald Trump |
A
parte do cérebro que entra em ação é a mais primitiva e animal. A do medo e da agressão, a da manada.
Tony Schwartz, que há 30 anos vendeu sua alma e escreveu para Trump seu livro A Arte da Negociação, chegou a conhecer
o atual candidato melhor do ninguém. “Trump
está só um degrau acima da selva”, disse em uma entrevista semana passada
ao Times de Londres. “Sua visão do mundo é tribal”.
O
que seria um problema somente para seus familiares e conhecidos que precisam
aguentá-lo se não fosse pelo fato de que as massas descerebradas o adoram e
existe o sério risco [agora, fato!] de que
acabe ocupando a Casa Branca. Não existe análise política que explique isso.
Essa ferramenta não é o suficiente. Para entender o fenômeno Trump é preciso
recorrer à antropologia, nesse caso ao estudo do animal humano em sua versão
mais selvagem e primitiva. Porque o
trumpismo não tem causa; tem inimigos. Não propõe esperança, propõe ódio.
O
problema não é Trump. O fantástico, o grotesco, o surreal é que às vésperas das
eleições as pesquisas digam que o ódio, a barbárie e a estupidez têm uma
razoável possibilidade de vencer, que não é uma bobagem pensar que Trump
conseguirá os votos necessários para ser coroado presidente dos Estados Unidos.
O fantástico, o grotesco, o surreal é
que tantos milhões dos habitantes do país mais próspero do mundo compartilhem
sua visão tribal, que não só Trump, mas também seus devotos estejam somente
um degrau acima da selva.
Fonte: El País – Eleições Estados
Unidos 2016 – Segunda-feira, 7 de novembro
de 2016 – 17h30 [Horário Centro Europeu] – Internet: clique aqui.
OLHANDO MAIS A
FUNDO A QUESTÃO:
América Profunda, explicação para o
fenômeno Trump
Entrevista
com Arlie Russell Hochschild
Socióloga norte-americana, professora emérita da Universidade da
Califórnia em Berkeley
Álvaro Guzmán
Bastida
Contexto
y Acción
26-10-2016
Após mergulhar por cinco anos num bastião conservador,
socióloga constata:
arrogante, esquerda desprezou os brancos empobrecidos.
Eles a identificam com o poder e vingam-se no voto.
ARLIE RUSSELL HOCHSCHILD |
O
que vai acontecer depois das eleições norte-americanas de 8 de novembro?
A
maioria dos comentaristas liberais, no sentido anglo-saxão do termo, sonham com
baixar uma grossa cortina sobre a revolta do “trumpism” — como um pesadelo coalhado de fanatismo e “deplorável”
ignorância — após vencer o magnata nas urnas [o que
não aconteceu, deu Trump!].
Isso,
avalia Arlie Russell Hochschild
(Boston, 1940), será um erro terrível.
Há cinco anos, a reconhecida socióloga, professora emérita da Universidade da
Califórnia em Berkeley, vem fazendo um exame de consciência em nome do Partido
Democrata. Ela lavrou suas penitências em um novo livro, Strangers in their Own Land:
Anger and Mourning on the American Right (trad.: Estrangeiros em sua
própria terra. Raiva e luto na direita americana).
Arlie
Hochschild, que começou sua pesquisa
muito antes que Trump entrasse na política, detectou uma quebra entre a
direita radical anti-Estado, materializada no por então emergente Tea Party*, e certa elite progressista cheia de desdém e autossuficiência. Para a
socióloga, grande parte da classe
trabalhadora branca, “gente decente e com preocupações bem reais”, se sente
esquecida pelo Partido Democrata, ainda que este seja, em tese, seu aliado
natural. “Muitos têm simpatia por Bernie Sanders. A bola está no campo dos democratas. O erro é deles: foram eles que
abandonaram a classe trabalhadora” — adverte ela, em uma conversa por
Skype.
Ao
seus setenta anos, Hochschild decidiu deixar para trás um confortável hábitat
de intelectuais que compartilhavam suas ideias progressistas, para adentrar no
sul profundo dos Estados Unidos. Mudou-se
para o coração da Luisiana mais homogeneamente branca, cristã, rural e
empobrecida, para tentar entender o que alimentava o ódio ao Estado e à
redistribuição que imperavam nessa região. O
resultado é um formidável retrato da direita norte-americana e daquilo que
Arlie Hochschild chama sua deep story
(narrativa profunda), que lhe valeu a indicação para o National Book Award (Prêmio Nacional do Livro).
Eis
a entrevista.
Por
que você decidiu embarcar nesse projeto que lhe custou cinco anos?
Arlie Hochschild: Há cinco anos, eu já notava
uma enorme divisão nos Estados Unidos entre esquerda e direita. Essa brecha só fazia crescer, não porque a
esquerda estivesse se movendo para a esquerda, mas porque a direita se tornava
mais direita. Dei-me conta de que eu não entendia, de forma alguma, esse
fenômeno; de que vivia num lugar habitado por gente que tampouco o entendia.
Então decidi sair dali e buscar um entorno o mais diferente possível do meu.
Encontrei-o no Sul, onde a direita cresceu mais rápido. A Luisiana era o supersul: branco, velho e religioso. Era o que eu
queria realmente conhecer.
Meu
objetivo era decifrar o paradoxo desse Estado vermelho [ou seja, republicano;
por oposição aos “azuis” democratas]. Nos Estados Unidos são os Estados mais
pobres, os que têm mais famílias desestruturadas, os piores sistemas de saúde e
educação, e que recebem mais dinheiro do governo federal que os impostos que
pagam, exatamente aqueles que se opõem com mais virulência ao Estado e que querem
reduzir seu poder. Esse é o paradoxo: se
você tem um problema, por que você não quer que lhe ajudem?
Tudo
isso chegava ao extremo na Luisiana.
Era o Estado mais pobre da União; 44% do
orçamento vinha do governo federal; e ainda assim era o Estado mais pró Tea Party, o mais conservador.
Pensei: “isso é perfeito!”. Desliguei meu sistema de alarme político e moral
para poder escutar e tentar escalar o “muro da empatia” que me separava dessa
gente. Queria averiguar o que sentiam, e
por que sentiam o que sentiam. Esse era o projeto.
Você
descreve sua viagem de cinco anos como a busca de uma narrativa profunda. A que exatamente você se refere?
Arlie Hochschild:
Esse é o
conceito básico do livro. Quando perguntamos a alguém: “Quais são as suas
ideias políticas?” É de se esperar que respondam falando dos seus valores e do
tipo de políticas que gostariam de ver aplicadas. Mas por baixo disso há algo mais básico. Eu chamo a isso de deep story (narrativa profunda). Todos, sejamos de esquerda ou de direita, a
temos. É a narrativa da vida como
cada um a sente, desprovida de juízos morais e de fatos. É como um sonho, mas que parece real para uma
pessoa.
A
narrativa profunda da direita que subjaz a tudo o que escutei durante esses
cinco anos é essa: A pessoa está numa
fila, como em uma espécie de peregrinação; no final dessa fila está o sonho americano,
que essa pessoa deseja e crê que merece, porque cumpriu as regras e trabalhou
duro a vida toda; só que a fila não anda, e de repente as pessoas começam a ver
que outros estão cortando a fila na frente delas. Isso provoca uma enorme
sensação de injustiça.
Quem
corta a fila nessa história? Não tem ninguém para impedir isso?
Arlie Hochschild:
Os que
cortam a fila são os negros que, por
meio de políticas de discriminação positiva, têm acesso a postos de trabalho que
normalmente estavam reservados aos brancos. Antes da Affirmative Action, as políticas estatais de discriminação
positiva, as mulheres não podiam ter acesso aos postos de trabalho dos homens.
Agora podem. Imigrantes e refugiados…
todos esses grupos.
Essa
gente que espera na fila não tem, concretamente, nenhum rancor contra ninguém.
Só querem alcançar o sonho americano, mas algo se interpõe no seu caminho e
lhes empurra para trás. Nessa narrativa,
isso é culpa de Barack Obama, que deveria vigiar a fila. Para todos então, ele seria o cara que facilita que os outros
cortem a fila. Isso torna o governo federal uma imensa máquina de
marginalização. “É o governo deles, não o
nosso. Não quero pagar imposto para eles. Quero ficar de fora. Eu sou um estrangeiro na minha própria terra”.
Há
uma outra parte nessa deep story:
Enquanto a fila não anda, você vê alguém na frente se voltar para trás e dizer:
“Sulistas estúpidos! Estão ferrados.
Vocês são uns ignorantes”. É como uma bofetada.
O
que você achou ao ouvir a Hillary Clinton chamar de “deploráveis” os eleitores
de Donald Trump?
Arlie Hochschild:
Eu gostaria
de tê-la metido em um avião comigo, trazê-la a Lake Charles, Luisiana, e lhe
apresentar as pessoas desses povoados, que cheguei a conhecer bastante bem;
pedir-lhe que sentasse, tomasse uma cerveja, fosse pescar e conhecesse algumas
pessoas dessa gente incrível que de modo algum é deplorável, ao contrário,
bastante admirável, mas que vive numa verdade diferente. De fato, ela poderia fazer muito para resolver seus
problemas, se se preocupasse por conhecê-los.
Você
acredita que essa gente se sente ignorada pelo Partido Democrata?
Arlie Hochschild:
Exatamente.
Essa é a mensagem do livro: de que há
gente decente com preocupações bem reais, que se sente esquecida. O Partido
Democrata, o partido dos trabalhadores, está se desmilinguindo. Os trabalhadores abandonam o partido em
massa, fazendo com que seja a esquerda que se transforme em estrangeira na sua
própria terra. Não são absolutamente deploráveis. São seus aliados
naturais. Muitos têm simpatia por Bernie
Sanders, que chamam afetuosamente de “tio Bernie”. De fato, estamos já de
acordo em muitas coisas. A bola está no campo dos democratas. O erro é todo deles: foram eles que
abandonaram a classe trabalhadora. [Este é o erro,
inclusive, da maioria dos políticos pelo mundo afora! Não levar em conta os
marginalizados pela globalização, pelo progresso científico-tecnológico e,
principalmente, pela financeirização da economia!]
Um
dos personagens do livro, Mike, sofreu por conta de um desastre ambiental, e é
muito ativo em lutas ecológicas, mas também se opõe à regulação estatal. Como
essas ideias convivem?
Arlie Hochschild:
É verdade.
Mike é agora ecologista, mas também vai votar em Donald Trump. Por que ele desconfia do Estado e
preferiria não pagar impostos? Creio que há três respostas no seu caso. Uma é a narrativa profunda. Ele me
disse: “Eu encarno a sua metáfora”. Ele
acha que o Estado seria um instrumento da sua própria marginalização.
Também acredita que ele representa o Norte, sempre dizendo para o Sul o que
fazer, como nos tempos da Guerra Civil, e isso não lhe agrada. E tem uma
terceira razão: Mike percebe o governo
da Luisiana como um instrumento a serviço do petróleo, e acha o mesmo do
governo federal, que é um instrumento a serviço da indústria.
AO FUNDO SE VÊ REFINARIA DE PETRÓLEO NA CIDADE DE NORCO (LUISIANA) |
Isso
se aproxima bastante de uma perspectiva progressista. Da forma como eu o entendo,
as grandes empresas petroquímicas e
petroleiras são as novas plantations
[fazendas de escravos]. São instituições de alto investimento e enorme
rentabilidade, e que compraram o governo estadual. Pagam ao governo do Estado para que ele faça a sua licitação. É
como se o Estado fosse parte da empresa. Essas
grandes empresas fizeram uso de uma estratégia emocional. Dizem: “Necessitamos de um bilhão e meio de dólares
do dinheiro dos contribuintes para poder assentar nossas raízes aqui na
Luisiana, ao invés de ir para o Texas”. Com uma pitadinha desse dinheiro
distribuem alguns presentes, pagam os uniformes da equipe de futebol americano
da Universidade do Estado da Luisiana, da Audubon Society para a proteção da
natureza, ou então financiam um curso de ciências para o ciclo básico. E as
pessoas dizem: “As empresas são bondosas.
Nos dão presentes e trabalho”.
Elas constroem, no entanto, fábricas
altamente automatizadas que importam trabalhadores de fora, filipinos
instaladores de tubulações e químicos do Instituto Tecnológico de Massachusetts. Geram pouquíssimos postos
de trabalho permanentes para as pessoas da Luisiana, algo em torno de 16%,
segundo a maioria das estimativas. O resto são professores, enfermeiras,
funcionários públicos… Mas a empresa goza de boa reputação. Enquanto isso, é o Estado que faz o
trabalho sujo das empresas. Sua função é dizer que protege as pessoas da
poluição, quando de fato não as protege. Assim,
as pessoas odeiam o Estado e amam as empresas.
Os
progressistas chegam e perguntam, consternados: “Como você pode amar a empresa
que está contaminando e odiar o Estado que poderia solucionar o seu problema?”.
As pessoas não veem as coisas assim. Esse
é um Estado refém. Não me estranha que elas não gostem dele. Ele está dominado, é um instrumento do
petróleo.
Você
mencionou as plantations, parte da
longa, profunda e enraizada história da discriminação racial na Luisiana.
Muitos progressistas reputam as reclamações de pessoas como os personagens do
seu livro à nostalgia dos privilégios abusivos desse passado. Eles os acusam de
racistas. O que estaria falhando nessa análise?
Arlie Hochschild:
Ela é
parcial e distorcida; sugere que o problema está só no Sul. Creio que é um
problema nacional. E também tira os preconceitos raciais de um contexto mais
amplo, a que me refiro no livro como honor
squeeze, ou sufocamento cultural.
Essa gente se sente abandonada pelo
caminho de muitas maneiras. É uma gente religiosa numa sociedade
secularizante. Não se pode dizer “Feliz Natal” em um lugar público. Tem que
dizer “Boas Festas” ou só “Felicidades”. Como
sulistas, sentem-se desprezados. É mais cool
estar em Nova York, San Francisco, Los Angeles.
Sentem que sua atitude a
respeito da família é agora ilegal no país, desde que a Suprema Corte decidiu que as mulheres têm direito a abortar em certas
circunstâncias e que os gays têm direito a se casar. Tudo isso os faz se
sentir demográfica, social, cultural e economicamente marginalizados. Os
sentimentos raciais são apenas uma parte disso. Sentem-se em competição com os negros. Sentem que os negros subiram e
eles desceram, e que eles também são agora uma minoria.
NO CARTAZ QUE UMA MULHER SEGURA, ESTÁ ESCRITO: "Obrigado, Senhor Jesus, pelo presidente Trump" |
Donald
Trump não tinha ainda passado para a política durante a maior parte da sua
pesquisa. Como a ascensão dele, até a indicação do Partido Republicano, afetou
as pessoas que aparecem no seu livro?
Arlie Hochschild:
Quando fui
a uma plenária de Donald Trump antes das primárias na Luisiana, em março desse
ano, me dei conta de que havia passado quatro anos e meio estudando um monte de
lenha, e que agora, com Donald Trump, estava estudando o fósforo que acenderia
a fogueira. Eles se sentem estrangeiros
em sua própria terra, à deriva a bordo de uma América sem rumo. Trump se
apresentou como um salvador. Prometeu-lhes tudo, recuperar a dignidade. Falava
por eles “Sim, vocês se sentem jogados. Caem
pouco a pouco…. Eu os levantarei”. Era
um fenômeno quase religioso.
No
livro você descreve seu encontro com uma cantora de gospel, Madonna Macy, que
lhe falou do locutor de rádio favorito dela, um jornalista extremamente
conservador. O que você aprendeu ao conhecê-la?
Arlie Hochschild:
Eu a
conheci em uma reunião das Mulheres
Republicanas do sudoeste da Luisiana, em Lake Charles e ela me disse “Amo Rush Limbaugh”, um popular
comentarista de rádio de direita, agressivo e extremadamente conservador,
provavelmente o mais popular no dial americano. Perguntei-lhe por que gostava. “Ele odeia as feminazis”, me respondeu.
Então lhe preguntei: “O que é uma feminazi?”. “São essas feministas que querem ser iguais aos homens. São más,
ambiciosas, egocêntricas”. Essa era a sua visão. Em seguida disse
amavelmente: “Foi difícil me escutar?” e completou: “Na realidade, vejo Rush Limbaugh como alguém que me protege de pessoas
como você, os liberais que acreditam que sou retrógrada e inculta, e que tenho
uma atitude equivocada, que sou racista, sexista e homofóbica, e, pra
completar, também gorda”. Senti que os progressistas impunham até as regras
alimentares no Sul, onde se ama comida frita.
Tem
outro personagem no livro, chamado Lee, que encarna o grande paradoxo porque
também apoia as causas ecologistas ao mesmo tempo que as políticas
antirregulação do Tea Party.
Despediram-no por contaminar um estuário? Por que ele não culpa a empresa que o
empregava, que continua sendo muito poderosa na Luisiana?
Arlie Hochschild:
Trata-se de
um homem que fez o trabalho sujo da empresa durante anos. Todos os dias, ao pôr do sol, derramava às escondidas um resíduo
quente, tóxico e perigoso em uma via fluvial. Ele se sentia muito culpado
por fazê-lo. Acabou adoecendo por causa daquilo, porque estava exposto a um
produto químico tóxico. Afastou-se por
doença e então o despediram por faltar ao trabalho.
Ele
odiava a empresa, Axiall, por
ter-lhe feito isso. Disse-me: “Minha mulher teve que esconder a pistola. Estava
tão furiosa pelo que me tinham feito…” Ao
mesmo tempo, sentiu que o Estado não o protegia dos abusos da empresa. É a
lógica que vi em toda parte: as pessoas
odeiam o Estado porque recolhe impostos e, daí, se supõe que tem que fazer
coisas boas, mas depois sentem que só serve para os marginalizar. [Atenção! Esse tipo de sentimento tem crescido muito no
Brasil, basta recordar-se das manifestações de junho de 2013 quando se
reclamava da falta de serviços prestados pelo Estado com o padrão “Fifa”!]
A
história de Lee continuou, e ele conseguiu se vingar da empresa. Os resíduos
estavam contaminando os peixes, e isso levou o governo a sugerir um limite de
consumo de pescado. Os pescadores e donos de restaurante ficaram furiosos. A
recomendação do Estado deixava-os sem negócio. Houve uma grande reunião com mil
pessoas. Lee Sherman subiu ao palco
com um cartaz que dizia: “Fui eu que
derramei o resíduo tóxico na água”. Os pescadores tiveram que coçar a
cabeça e dizer: “Suponho que a culpa não
é do grande Estado, mas da grande empresa”.
Agora Lee quer se vingar do
Estado. Aos
seus 83 anos está distribuindo cartazes para o candidato do Tea Party ao Congresso por Luisiana.
Você
menciona no seu livro a EMOÇÃO como um ingrediente chave da política. Por que
ela é importante como elemento de análise?
Arlie Hochschild:
Creio que chegar a entender a narrativa profunda de cada um de nós é um passo preliminar para
respeitar e entender, fundamentalmente, o que leva as pessoas a pensar o que
pensam na política. Isso nos abre aos outros. Não é exatamente um fim em si
mesmo, mas é preciso fazê-lo. Do contrário, o diálogo será inútil e defensivo.
Temos que criar — e me refiro à nação no seu conjunto, esquerda e direita — uma
zona de segurança na qual possamos nos comunicar sobre esses assuntos de forma
aberta e produtiva. Isso não vai
acontecer até que analisemos as bases emocionais de nossas convicções políticas.
* O movimento
TEA PARTY (em inglês: Tea Party movement, às vezes traduzido
como Partido do Chá) é um movimento
social e político criado nos Estados Unidos em 2009. Tem sido descrito como
populista, ideologicamente ligado ao libertarianismo e à direita. Este grupo
político trata-se de uma ala radical do Partido Republicano dos Estados Unidos,
e não é considerado um partido em si apesar de contar com a adesão de boa parte
dos Republicanos. O movimento surgiu a partir de uma série de protestos
coordenados, tanto no nível local como nacional, que se realizaram a partir do
início de 2009. Os protestos foram, em parte, motivados por diversas leis
federais, como o Plano de resgate econômico
de 2008, a Lei de Recuperação e
Reinvestimento dos Estados Unidos de 2009 e a Lei de Proteção ao Paciente e Assistência Médica Acessível (reforma
do sistema de saúde, popularmente conhecida como "Obamacare"). O
movimento defende uma política fiscal conservadora e o originalismo, isto é, a interpretação do texto constitucional
segundo o seu significado à época em que foi adotado. De acordo com diversas
pesquisas de opinião, cerca de 10% dos norte-americanos consideram-se parte do
movimento (Fonte: Wikipédia).
Traduzido do espanhol por Ricardo Cavalcanti-Schiel, com pequenas
e pontuais correções por parte de Telmo
José Amaral de Figueiredo. Acesse a versão original desta entrevista,
clicando aqui.
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